O novo rito da Missa não é substancialmente idêntico ao
anterior?
Discussão sobre Traditionis Custodes: Dom Jerônimo alega que
o Papa Francisco busca unificar a liturgia latina, afirmando que não existem
dois missais, apenas uma forma precedente e uma forma atual do mesmo livro.
Essa afirmação corresponde com a realidade?
Fonte: Revista Catolicismo, Nº 873, Setembro/2023
Pergunta — Frequento a missa tradicional e tive uma
discussão com um colega de faculdade a respeito do motu próprio Traditionis
Custodes. Talvez por falta de argumentos, ele acabou insistindo muito para que
eu não deixasse de ver no Youtube um vídeo do 1° Colóquio Internacional de
Liturgia da Universidade Católica do Pernambuco sobre a Eucaristia como sinal
de reconciliação. E que aí eu procurasse a mesma temática sobre Traditionis
Custodes, que teve como um dos palestrantes o beneditino Dom Jerônimo Pereira.
Vi a matéria. Em síntese, ele afirmou que que o Papa Francisco não fez senão
reassumir o desejo de São Pio V de que a Igreja latina tivesse uma única forma
ritual e por isso promulgou o missal de 1570. Mas o que me chamou a atenção foi
ele ter afirmado categoricamente que é intelectualmente “desonesto” dizer que
existem dois missais, porque se trataria apenas de “uma forma precedente e de
uma forma atual de um único livro”. Essa afirmação, que segundo Dom Jerônimo
estaria na base do motu proprio Traditionis Custodes,corresponde com a
realidade?
Resposta — Agradeço a pergunta do missivista e lhe
devolvo a pergunta: é honesto dizer que o novo missal de Paulo VI é apenas a
forma atual de um único livro, cuja versão pré-conciliar é o missal de 1962?
Senão vejamos:
os ritos de entrada constituem em grande parte uma criação
inteiramente nova;
o belíssimo Ofertório que prepara e prefigura a imolação
incruenta da Consagração foi substituído por uma Apresentação das Oferendas
inspirada nas Beràkhôth do Kiddush, ou seja, nas bênçãos da ceia
pascal dos judeus que não têm nada de especificamente católico;
o antigo Canon romano foi profundamente modificado e foram
redigidas três novas orações eucarísticas compostas seguindo modelos orientais
e galicanos que, ao menos pelo seu estilo, representam um corpo estranho no
rito romano;
na consagração do vinho foram retiradas, sem motivo, as
palavras mysterium fidei sem motivo, das palavras mysterium
fidei (cf. I Tim. III, 9) — inseridas nas palavras da consagração em torno
do século VI — para transformá-las num apelo do padre depois da consagração,
que jamais esteve em uso, seguido de uma aclamação da assembleia que nunca
existiu no rito latino e que representa uma ruptura abrupta no relato;
das 1.347 orações no Rito Romano tradicional, 669 foram
extirpadas (49,7%), 307 foram editadas (23,8%), 206 foram combinadas com outras
para fazer uma nova (15,3%) e apenas 165 permaneceram inalteradas (12,2%) no
rito novo;
a organização das leituras, que remontava a mais de mil
anos, foi radicalmente modificada em aras de ampla reorganização do ano
litúrgico e do santoral que não deixou subsistir praticamente nada do estado
anterior;
as numerosas prescrições de “escolhas possíveis”
contribuíram para introduzir o arbitrário na organização de uma missa cuja
celebração anterior era estritamente regulamentada.
É honesto dizer que o novo missal de Paulo VI é apenas a
forma atual de um único livro, quando:
o Pe. Pierre Jounel, um dos especialistas do Consilium que
preparou a reforma litúrgica, reconheceu ao jornal La
Croix que “a Segunda [Oração Eucarística] foi retomada da Oração
Eucarística de [Santo] Hipólito (século III)”, que “a Terceira se inspirou
no esquema das liturgias orientais” e que “a Quarta foi elaborada
numa noite, por uma pequena equipe em torno do Pe. Gelineau”?
esse mesmo Pe. Gelineau, um dos redatores do novo rito,
confessou que “na verdade, é uma outra liturgia da Missa” e
que “é preciso dizê-lo sem rodeios: o rito romano tal como nós o
conhecíamos não existe mais, ele foi destruído”?
o principal artífice da reforma, Dom Annbale Bugnini,
declarou que “a liturgia está em meio a um período de transição”,
porque “não se trata apenas de retocar uma obra de arte de grande valor,
mas às vezes é necessário dar novas estruturas a ritos inteiros”, pelo que se
trata “de uma restauração fundamental, diria quase de uma reformulação e,
em certos pontos, de uma verdadeira nova criação”?
o próprio Paulo VI, no domingo anterior à entrada em vigor,
afirmou tratar-se de um “novo rito da Missa”, uma mudança “que afeta
nosso patrimônio religioso hereditário”?
o então cardeal Joseph Ratzinger reconheceu que o problema
do novo Missal reside “na criação de um livro inteiramente novo, embora a
partir de material antigo”?
um dos maiores estudiosos da Liturgia do século XX, Mons.
Klaus Gamber, deplorou que o rito romano tradicional “foi
destruído”, porque “os reformadores queriam uma liturgia
completamente nova, uma liturgia que diferisse da tradicional tanto no espírito
quanto na forma”?
“Nem mesmo a autoridade suprema da Igreja pode mudar a
liturgia”
Não há dúvida de que há continuidade quanto à essência do
sacramento, pois em ambos os ritos realmente se celebra uma Santa Missa válida;
mas que há uma ruptura quanto ao rito é demonstrado acima (além das
deficiências teológicas apontadas por muitos estudiosos e, em particular,
pelo Breve estudo crítico enviado a Paulo VI pelos cardeais Ottaviani
e Bacci).
Livro: A reforma litúrgica por Annibale Bugnini
Isso posto, a questão que surge imperativamente dessa
constatação é se a reforma que impôs essa ruptura ritual foi legítima. Da qual,
por sua vez, surge uma segunda pergunta: tem o Papa Francisco o poder de
revogar um rito tradicional e declarar, como o fez no motu
proprio Traditionis Custodes, que o missal de Paulo VI “é a única
expressão da lex orandi do rito romano”?
A respeito da primeira questão, convém citar o que escreveu
recentemente o canonista Frei Reginaldo-Maria Rivoire, no seu estudo Omotu
proprio Traditionis Custodes posto à prova da racionalidade jurídica:
“Como sugere a etimologia, o que é legítimo (ou lícito) é o
que foi legalmente estabelecido. Isso pode ser entendido de várias maneiras. Um
ato jurídico (seja administrativo, legislativo ou judicial) é legítimo se for
formulado de acordo com as formalidades e exigências da lei (cf. cân. 124). No
entanto, mais fundamentalmente, tal ato deve exibir aqueles elementos
constitutivos que lhe são essenciais. Assim, um ato jurídico normativo pode ser
editado pela autoridade competente apenas dentro de sua própria área de
jurisdição, a fim de regular as coisas que são de seu domínio. Ainda que
cumpridas as formalidades legais, um enunciado normativo proferido por quem não
tem domínio sobre a realidade que pretende regular, não é uma norma jurídica,
mas, quando muito, uma norma proposta.
“Consequentemente, um ato normativo só é legítimo se for
conforme à natureza das coisas, porque tal natureza não cai sob o domínio dos
homens. Nenhuma autoridade humana pode estabelecer uma ordem que vá contra essa
realidade. Uma ‘norma jurídica’ que fosse contrária à natureza das coisas não
seria racional e, de fato, não seria norma alguma. Tal norma não introduz uma
ordem; introduz uma desordem. Não é justa, mas sim vis [força]
e iniuria [ferimento].
“Procuremos aplicar estes princípios à reforma litúrgica de
Paulo VI. Considerando apenas o novo Missal, ninguém contesta que foi
promulgado pela autoridade legítima segundo as formas legais, ou seja, pelo
Papa Paulo VI na Constituição Apostólica Missale Romanum de 3 de
abril de 1969. […]
“A verdadeira questão é, antes, a dos limites da autoridade
do Sumo Pontífice em matéria litúrgica. Nos tempos modernos, no Ocidente, os
papas se apropriaram do direito de legislar de maneira cada vez mais detalhada
e ampla em matéria litúrgica. […] É verdade que o poder do bispo de Roma é
‘supremo’, no sentido de que não está subordinado a nenhum poder humano, e
‘pleno’, no sentido de que possui em sua plenitude todo o poder que Cristo deu
à sua Igreja para ensinar, santificar e governar. Mas esse poder não é absoluto
e ilimitado, como se o pensamento ou a vontade do papa fossem lei. Está ao
serviço da Tradição santa e viva da Igreja, que deve conservar e transmitir
sempre. Isto é especialmente verdadeiro em relação à liturgia, que é um dos
elementos constitutivos daquela Tradição. O cardeal Ratzinger certa vez
explicou isso usando a impressionante imagem de um jardineiro em seu jardim, em
oposição a um técnico que fabrica máquinas. […]
“Isso é resumido no Catecismo da Igreja Católica, n. 1125:
‘Nem mesmo a autoridade suprema da Igreja pode mudar a liturgia a seu
bel-prazer, mas somente na obediência da fé e no respeito religioso do mistério
da liturgia’.
“Diante do exposto, entende-se que uma lei litúrgica
pontifícia que não respeitasse a própria natureza da liturgia não seria uma
lei, uma regula iuris, mas sim uma corruptela iuris, uma corrupção da
lei, ainda que fosse garantida por todas as formalidades jurídicas. Faltaria a
ela aquele caráter fundamental de qualquer lei que é a racionalidade. Uma vez
que o ato de legislar é um ato da razão, ele próprio é condicionado,
‘normatizado’, pela natureza das coisas. […]
“Pode haver normas litúrgicas impróprias, questionáveis,
defeituosas sem que sejam necessariamente irracionais nem, por conseguinte,
ilegítimas. […] No entanto, uma norma totalmente inadequada à realidade que
pretende ordenar carece de legitimidade. E consideramos contrário à própria
natureza de um rito litúrgico que seja fabricado ou manufaturado. […]
“Assim, independentemente da consideração de suas graves
deficiências rituais intrínsecas, que o tornam uma expressão insatisfatória
da Lex credendi, o simples fato de o Novus Ordo Missæ ser
um rito novo e fabricado é suficiente para o canonista questionar sua
legitimidade. [o destaque é nosso].
“Dito isto, mesmo que alguém admitisse (para fins de
argumentação) que um novo rito autêntico pudesse ser criado do zero pela
vontade de um papa, esse novo rito só poderia ser opcional e não poderia
simplesmente substituir um rito pré-existente”.
O missal tradicional nunca foi revogado jurídicamente
Essa última afirmação responde pela negativa à segunda
pergunta que levantei, ou seja, se o Papa Francisco tem o poder de declarar
em Traditionis Custodes que o missal de Paulo VI “é a única
expressão da Lex orandi do rito romano”. Obviamente que não tem.
Tanto mais quanto Bento XVI, na carta que acompanhava seu motu
proprio Summorum Pontificum, escreveu: “Quanto ao uso do Missal
de 1962 como Forma Extraordinária da liturgia da Missa, gostaria de chamar a
atenção para o fato de que este Missal nunca foi revogado juridicamente e,
consequentemente, em princípio, sempre foi permitido.”
Convém, aliás, encerrar esta resposta com uma consideração
de senso comum, feita pelo Frei Reginaldo Maria Rivoire em seu estudo: “Há
uma contradição por parte dos reformadores em sustentar que o novo rito é
substancialmente idêntico ao anterior [como fez Dom Jerônimo Pereira OSB,
na sua palestra], enquanto ao mesmo tempo julgam a celebração de acordo
com uma edição anterior do Missal anormal, ou mesmo ilícita sem permissão
excepcional”.
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