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domingo, 7 de julho de 2024

 Peçamos a coragem de dizer “não”

Pe. David Francisquini

Pilatos, o governador romano que cometeu o crime mais monstruoso de toda a História, não foi movido a praticá-lo por qualquer ódio ideológico; tampouco visava à conquista de novas riquezas, nem a comprazer alguma Salomé. Neste particular difere de Herodes, que para salvaguardar seu trono, seu bem-estar e suas riquezas, perpetrou covardemente a matança dos Santos Inocentes.

Aliás, os grandes tiranos da História – Lenine, Stalin, Hitler, entre outros – por ambição ideológica e ódio a Deus, à Igreja e à Fé, inundaram a terra com o sangue de mártires.

Pilatos, mesmo afirmando que não encontrou crime algum em Nosso Senhor Jesus Cristo, entretanto O condenou. O que o teria movido?

Plinio Corrêa de Oliveira considera numa de suas meditações sobre a Via Sacra que Pilatos foi levado a condenar o Justo pelo receio de desagradar a César Augusto. Portanto, não queria complicação política que pudesse indispor o povo judeu contra o jugo romano. Pilatos foi mole, indolente, numa palavra, cúmplice daquela pérfida orquestração contra a vida de Nosso Senhor.

Ao querer contemporizar com a mentalidade que grassava no povo judeu, pareceu-lhe que condenando Nosso Senhor à flagelação e à coroação de espinhos, contentaria com isso os judeus, livrando-O da sentença de morte.

Utilizou-se da política característica dos covardes, isto é, de “ceder para não perder”, sempre condenada ao fracasso mais rotundo. Depois de flagelado e “coroado”, Pilatos apresentou Jesus à populaça açulada, mas ela não se contentou e exigiu do governador a morte do Justo.

Grande lição. Quanto mais se cede, mais o inimigo prevalece. Em muitas ocasiões, é preciso saber dizer um “não” categórico, pois não se pode fazer concessões, nem mesmo contemporizar com o mal, pois entre a verdade e o erro, entre o bem e o mal há um ódio irreconciliável. Não há paz entre os que são de Deus e os que são da serpente, entre a raça da Virgem e a do demônio.

Pilatos não quis seguir a via da verdade, da inocência, as regras de um julgamento reto e justo, mas quis ajustar a verdade ao erro, a justiça à mentira e à iniquidade. Com o gesto infame de “lavar as mãos”, quis isentar-se da culpa pelo sangue inocente que seria derramado. E para estar bem com todos, entregou Nosso Senhor ao populacho para ser crucificado. 

Partindo de um governador romano que na condição de juiz reprovasse o Inocente, caberia apenas uma condenação: a morte de cruz, pois não podia haver um crime mais ignominioso e que causasse maiores sofrimentos do que esse.


São Tomás afirma que o Homem-Deus quis morrer ostensivamente pregado na cruz, pois entre todos os gêneros de morte, nenhum era mais execrável. Ele o fez para ostentar como o pecado é ignominioso.

Esse gênero de morte foi conveniente por excelência para a satisfação dos pecados de nossos primeiros pais, por terem comido da árvore contra a vontade de Deus. Convinha que, para satisfazer esse pecado e obedecer à vontade do Padre Eterno, Cristo consentisse em ser pregado no madeiro para recuperar o que Adão perdeu por desobediência.

A sua divina presença santificou a terra. Andou sobre ela para difundir o Evangelho e operar estupendos milagres, purificando-a com o preciosíssimo sangue vertido de seu lado chagado.  Ao ser elevado na Cruz, santificou o ar que envolvia a terra e, assim, atraiu a Si todas as coisas.

A figura da cruz, diz Santo Tomás, ao se expandir de um centro único em quatro extremos opostos, significa o poder e a providência de Nosso Senhor esparsos por toda parte, que dela pendente com uma mão atrai o povo fiel e com a outra o povo pagão.

Ao ser condenado à morte injusta na cruz, Jesus Cristo tinha escolhido esse gênero de morte para que fosse o Mestre de todas as dimensões – da largura, da altura, do comprimento e da profundidade –, como símbolo das boas obras, da estabilidade e da perseverança, da esperança perfeita e da graça gratuita.

Como Mestre da Verdade, prega em sua Cátedra, ou seja, a Cruz: “Quem quiser vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”.

terça-feira, 31 de outubro de 2023

O novo rito da Missa não é substancialmente idêntico ao anterior?

Discussão sobre Traditionis Custodes: Dom Jerônimo alega que o Papa Francisco busca unificar a liturgia latina, afirmando que não existem dois missais, apenas uma forma precedente e uma forma atual do mesmo livro. Essa afirmação corresponde com a realidade?

Fonte: Revista Catolicismo, Nº 873, Setembro/2023


Pergunta — Frequento a missa tradicional e tive uma discussão com um colega de faculdade a respeito do motu próprio Traditionis Custodes. Talvez por falta de argumentos, ele acabou insistindo muito para que eu não deixasse de ver no Youtube um vídeo do 1° Colóquio Internacional de Liturgia da Universidade Católica do Pernambuco sobre a Eucaristia como sinal de reconciliação. E que aí eu procurasse a mesma temática sobre Traditionis Custodes, que teve como um dos palestrantes o beneditino Dom Jerônimo Pereira. Vi a matéria. Em síntese, ele afirmou que que o Papa Francisco não fez senão reassumir o desejo de São Pio V de que a Igreja latina tivesse uma única forma ritual e por isso promulgou o missal de 1570. Mas o que me chamou a atenção foi ele ter afirmado categoricamente que é intelectualmente “desonesto” dizer que existem dois missais, porque se trataria apenas de “uma forma precedente e de uma forma atual de um único livro”. Essa afirmação, que segundo Dom Jerônimo estaria na base do motu proprio Traditionis Custodes,corresponde com a realidade?

 

Resposta — Agradeço a pergunta do missivista e lhe devolvo a pergunta: é honesto dizer que o novo missal de Paulo VI é apenas a forma atual de um único livro, cuja versão pré-conciliar é o missal de 1962?

 

Senão vejamos:

 

os ritos de entrada constituem em grande parte uma criação inteiramente nova;

o belíssimo Ofertório que prepara e prefigura a imolação incruenta da Consagração foi substituído por uma Apresentação das Oferendas inspirada nas Beràkhôth do Kiddush, ou seja, nas bênçãos da ceia pascal dos judeus que não têm nada de especificamente católico;

o antigo Canon romano foi profundamente modificado e foram redigidas três novas orações eucarísticas compostas seguindo modelos orientais e galicanos que, ao menos pelo seu estilo, representam um corpo estranho no rito romano;

na consagração do vinho foram retiradas, sem motivo, as palavras mysterium fidei  sem motivo, das palavras mysterium fidei (cf. I Tim. III, 9) — inseridas nas palavras da consagração em torno do século VI — para transformá-las num apelo do padre depois da consagração, que jamais esteve em uso, seguido de uma aclamação da assembleia que nunca existiu no rito latino e que representa uma ruptura abrupta no relato;

das 1.347 orações no Rito Romano tradicional, 669 foram extirpadas (49,7%), 307 foram editadas (23,8%), 206 foram combinadas com outras para fazer uma nova (15,3%) e apenas 165 permaneceram inalteradas (12,2%) no rito novo;

a organização das leituras, que remontava a mais de mil anos, foi radicalmente modificada em aras de ampla reorganização do ano litúrgico e do santoral que não deixou subsistir praticamente nada do estado anterior;

as numerosas prescrições de “escolhas possíveis” contribuíram para introduzir o arbitrário na organização de uma missa cuja celebração anterior era estritamente regulamentada.

É honesto dizer que o novo missal de Paulo VI é apenas a forma atual de um único livro, quando:

 

o Pe. Pierre Jounel, um dos especialistas do Consilium que preparou a reforma litúrgica, reconheceu ao jornal La Croix que “a Segunda [Oração Eucarística] foi retomada da Oração Eucarística de [Santo] Hipólito (século III)”, que “a Terceira se inspirou no esquema das liturgias orientais” e que “a Quarta foi elaborada numa noite, por uma pequena equipe em torno do Pe. Gelineau”?

esse mesmo Pe. Gelineau, um dos redatores do novo rito, confessou que “na verdade, é uma outra liturgia da Missa” e que “é preciso dizê-lo sem rodeios: o rito romano tal como nós o conhecíamos não existe mais, ele foi destruído”?

o principal artífice da reforma, Dom Annbale Bugnini, declarou que “a liturgia está em meio a um período de transição”, porque “não se trata apenas de retocar uma obra de arte de grande valor, mas às vezes é necessário dar novas estruturas a ritos inteiros”, pelo que se trata “de uma restauração fundamental, diria quase de uma reformulação e, em certos pontos, de uma verdadeira nova criação”?

o próprio Paulo VI, no domingo anterior à entrada em vigor, afirmou tratar-se de um “novo rito da Missa”, uma mudança “que afeta nosso patrimônio religioso hereditário”?

o então cardeal Joseph Ratzinger reconheceu que o problema do novo Missal reside “na criação de um livro inteiramente novo, embora a partir de material antigo”?

um dos maiores estudiosos da Liturgia do século XX, Mons. Klaus Gamber, deplorou que o rito romano tradicional “foi destruído”, porque “os reformadores queriam uma liturgia completamente nova, uma liturgia que diferisse da tradicional tanto no espírito quanto na forma”?

“Nem mesmo a autoridade suprema da Igreja pode mudar a liturgia”

Não há dúvida de que há continuidade quanto à essência do sacramento, pois em ambos os ritos realmente se celebra uma Santa Missa válida; mas que há uma ruptura quanto ao rito é demonstrado acima (além das deficiências teológicas apontadas por muitos estudiosos e, em particular, pelo Breve estudo crítico enviado a Paulo VI pelos cardeais Ottaviani e Bacci).

Livro: A reforma litúrgica por Annibale Bugnini

Isso posto, a questão que surge imperativamente dessa constatação é se a reforma que impôs essa ruptura ritual foi legítima. Da qual, por sua vez, surge uma segunda pergunta: tem o Papa Francisco o poder de revogar um rito tradicional e declarar, como o fez no motu proprio Traditionis Custodes, que o missal de Paulo VI “é a única expressão da lex orandi do rito romano”?


A respeito da primeira questão, convém citar o que escreveu recentemente o canonista Frei Reginaldo-Maria Rivoire, no seu estudo Omotu proprio Traditionis Custodes posto à prova da racionalidade jurídica:

“Como sugere a etimologia, o que é legítimo (ou lícito) é o que foi legalmente estabelecido. Isso pode ser entendido de várias maneiras. Um ato jurídico (seja administrativo, legislativo ou judicial) é legítimo se for formulado de acordo com as formalidades e exigências da lei (cf. cân. 124). No entanto, mais fundamentalmente, tal ato deve exibir aqueles elementos constitutivos que lhe são essenciais. Assim, um ato jurídico normativo pode ser editado pela autoridade competente apenas dentro de sua própria área de jurisdição, a fim de regular as coisas que são de seu domínio. Ainda que cumpridas as formalidades legais, um enunciado normativo proferido por quem não tem domínio sobre a realidade que pretende regular, não é uma norma jurídica, mas, quando muito, uma norma proposta.

 

“Consequentemente, um ato normativo só é legítimo se for conforme à natureza das coisas, porque tal natureza não cai sob o domínio dos homens. Nenhuma autoridade humana pode estabelecer uma ordem que vá contra essa realidade. Uma ‘norma jurídica’ que fosse contrária à natureza das coisas não seria racional e, de fato, não seria norma alguma. Tal norma não introduz uma ordem; introduz uma desordem. Não é justa, mas sim vis [força] e iniuria [ferimento].

 

“Procuremos aplicar estes princípios à reforma litúrgica de Paulo VI. Considerando apenas o novo Missal, ninguém contesta que foi promulgado pela autoridade legítima segundo as formas legais, ou seja, pelo Papa Paulo VI na Constituição Apostólica Missale Romanum de 3 de abril de 1969. […]

 

“A verdadeira questão é, antes, a dos limites da autoridade do Sumo Pontífice em matéria litúrgica. Nos tempos modernos, no Ocidente, os papas se apropriaram do direito de legislar de maneira cada vez mais detalhada e ampla em matéria litúrgica. […] É verdade que o poder do bispo de Roma é ‘supremo’, no sentido de que não está subordinado a nenhum poder humano, e ‘pleno’, no sentido de que possui em sua plenitude todo o poder que Cristo deu à sua Igreja para ensinar, santificar e governar. Mas esse poder não é absoluto e ilimitado, como se o pensamento ou a vontade do papa fossem lei. Está ao serviço da Tradição santa e viva da Igreja, que deve conservar e transmitir sempre. Isto é especialmente verdadeiro em relação à liturgia, que é um dos elementos constitutivos daquela Tradição. O cardeal Ratzinger certa vez explicou isso usando a impressionante imagem de um jardineiro em seu jardim, em oposição a um técnico que fabrica máquinas. […]

 

“Isso é resumido no Catecismo da Igreja Católica, n. 1125: ‘Nem mesmo a autoridade suprema da Igreja pode mudar a liturgia a seu bel-prazer, mas somente na obediência da fé e no respeito religioso do mistério da liturgia’.

 

“Diante do exposto, entende-se que uma lei litúrgica pontifícia que não respeitasse a própria natureza da liturgia não seria uma lei, uma regula iuris, mas sim uma corruptela iuris, uma corrupção da lei, ainda que fosse garantida por todas as formalidades jurídicas. Faltaria a ela aquele caráter fundamental de qualquer lei que é a racionalidade. Uma vez que o ato de legislar é um ato da razão, ele próprio é condicionado, ‘normatizado’, pela natureza das coisas. […]

 

“Pode haver normas litúrgicas impróprias, questionáveis, defeituosas sem que sejam necessariamente irracionais nem, por conseguinte, ilegítimas. […] No entanto, uma norma totalmente inadequada à realidade que pretende ordenar carece de legitimidade. E consideramos contrário à própria natureza de um rito litúrgico que seja fabricado ou manufaturado. […]

 

“Assim, independentemente da consideração de suas graves deficiências rituais intrínsecas, que o tornam uma expressão insatisfatória da Lex credendi, o simples fato de o Novus Ordo Missæ ser um rito novo e fabricado é suficiente para o canonista questionar sua legitimidade. [o destaque é nosso].

 

“Dito isto, mesmo que alguém admitisse (para fins de argumentação) que um novo rito autêntico pudesse ser criado do zero pela vontade de um papa, esse novo rito só poderia ser opcional e não poderia simplesmente substituir um rito pré-existente”.

 

O missal tradicional nunca foi revogado jurídicamente

 

Essa última afirmação responde pela negativa à segunda pergunta que levantei, ou seja, se o Papa Francisco tem o poder de declarar em Traditionis Custodes que o missal de Paulo VI “é a única expressão da Lex orandi do rito romano”. Obviamente que não tem. Tanto mais quanto Bento XVI, na carta que acompanhava seu motu proprio Summorum Pontificum, escreveu: “Quanto ao uso do Missal de 1962 como Forma Extraordinária da liturgia da Missa, gostaria de chamar a atenção para o fato de que este Missal nunca foi revogado juridicamente e, consequentemente, em princípio, sempre foi permitido.”

 

Convém, aliás, encerrar esta resposta com uma consideração de senso comum, feita pelo Frei Reginaldo Maria Rivoire em seu estudo: “Há uma contradição por parte dos reformadores em sustentar que o novo rito é substancialmente idêntico ao anterior [como fez Dom Jerônimo Pereira OSB, na sua palestra], enquanto ao mesmo tempo julgam a celebração de acordo com uma edição anterior do Missal anormal, ou mesmo ilícita sem permissão excepcional”.

 

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Link original: https://www.ipco.org.br/o-novo-rito-da-missa-nao-e-substancialmente-identico-ao-anterior

terça-feira, 9 de maio de 2023

 

TEMPO DE PÁSCOA

 

*Pe. David Francisquini

 

Encontramo-nos no tempo pascal, tempo rico em lições. Há vários pontos de sumo interesse nos relatos evangélicos a serem considerados. A misteriosa aparição a Santa Maria Madalena, a corrida de Pedro e João até o sepulcro, e outros detalhes relevantes. Hoje, porém, iremos nos ater no campo da fé, a Pedro e ao encontro com os discípulos de Emaús.

O nosso Divino Mestre ressuscitou dentre os mortos para prosseguir sua missão de jogar a semente da fé nos corações, confirmando a todos nesta mesma fé e mais, no seu espírito. Para isto multiplicou suas visitas, aparecendo várias vezes aos apóstolos e a seus demais discípulos.

Por isso manifestou-se primeiramente ao mais digno e fiel de todos eles, que era Simão Pedro. Visava consolidar uma fidelidade a toda a prova, para que não ficasse indeciso ou confuso, de modo a não tomar posição inadequada com a súbita e inesperada aparição de Cristo.

Foi Pedro que havia reconhecido e confessado a sua divindade, então veio a ele para consolá-lo, confortá-lo, evitando que caísse em desespero ou desilusão. Aliás, não foi sem razão que alguns dos apóstolos não creram no relato dos dois discípulos de Emaús, como narra Marcos; no entanto, por sua vez São Lucas diz o contrário, afirmando que ‘alguns’ dos discípulos não creram nesse relato daqueles dois discípulos.

São Pedro fora testemunha de muitos milagres. Assim, não se deve imaginar que participasse da falta da fé na ressurreição de Cristo; então Cristo apareceu a ele antes dos demais discípulos.

Nesse episódio tão cheio de significado, desejo ressaltar que os discípulos de Emaús estavam com seus olhos cerrados, obscurecidos, e não puderam, como também ocorreu com Madalena, reconhecer de pronto a Jesus ao encontrá-Lo.

Mas o Salvador prepara a mente deles, ao dar a entender que iria para mais longe naquele caminho. Com isso, dava-lhes ocasião para que aprendessem a se exercitar na virtude da caridade, e assim pudessem saber quem Ele era, justamente no momento da fração do pão.

Aqueles homens, que tinham talvez pouca fé no Salvador, enveredaram pelos caminhos da solicitude e da caridade, quando o transeunte ao cair da noite se dispôs ir mais longe. Ele conquistou os corações daqueles discípulos ao dar-lhes oportunidade de exercitar a virtude da caridade; só assim passaram a compreender que Jesus estava vivo e presente, ao recebê-lo generosamente em sua casa.

Cristo encontra acolhida entre os seus discípulos e no repartir o pão é reconhecido ao estar à mesa. Ao caminhar com eles, seus olhos estavam cerrados, algo os impedia de reconhecer o que viam, como se uma névoa ou cerração os impedisse de ver claramente. Havia em suas almas como que um obstáculo para reconhecer quem era Jesus, aquele que fora glorificado com a Ressurreição.

Foi reconhecido por seus discípulos, ao hospedar o mestre, por um gesto inequívoco que tinham gravado na memória: quando o Salvador procedeu ao partir do pão, como recentemente havia feito em sua presença, na Santa Ceia. Assim devemos nos dispor, interiormente, também nós, ao receber Jesus na Sagrada Comunhão.

Santo Agostinho afirma que o homem instruído nas coisas da fé, quando partilha seus bens maiores com aquele que recebe instrução, pode estar certo de ter Jesus consigo. Diz ainda, o grande doutor, “com efeito os discípulos de Emaús receberam o ensinamento da palavra quando lhes explicava a Sagrada Escritura.

E porque praticavam a hospitalidade, mereceram conhecer na fração do pão, o que não haviam reconhecido quando lhes explicava as escrituras: de fato, não são justos diante de Deus os que ouvem a lei, mas os que observam a lei, aqueles que serão justificados”.

Possamos também nós, neste momento de tantas trevas no ambiente espiritual, em meio à imensa crise moral e religiosa de nossos dias, permanecer ancorados na firme convicção de fé em Jesus ressuscitado.

Assim lograremos receber a imensa graça da fidelidade, apesar de nossas fraquezas e limitações, de modo a merecermos, como prometeu o Senhor na carta à igreja de Filadélfia: porque foste fraca, mas fiel, eis que ponho diante de ti uma porta que abre e ninguém fecha, que fecha e ninguém abre.

Essa a imensa recompensa que devemos pedir à Santíssima Virgem, Medianeira Universal de todas as graças, neste tempo pascal.

sexta-feira, 7 de abril de 2023

 

Reflexão para Sexta-feira Santa

Pe. David Francisquini

Jesus morre lentamente. São três horas de agonia. Após suplícios inenarráveis e atrozes, Jesus entregou o seu espírito ao Divino Pai, em meio da perplexidade de todos; até mesmo de um pagão, o Centurião romano que, atarantado, exclamou ser aquele homem um justo.

Os santos evangelhos nos contam ter ocorrido grande tremor de terra, que o sol perdido o seu brilho, a terra ficou envolta em escuridão. Isso deixou atônito o centurião e todos que acompanhavam espantados as circunstâncias da morte de Jesus Cristo, percebendo que se tratava na realidade de um Deus.

Esses prodígios se sucederam e demonstraram que a morte do Justo, que ao mesmo tempo era Deus e Homem, reuniam todos os elementos para registrar e glorificar o prodígio de misericórdia de um Deus que deu vida por todos nós.

  Não foi sem razão que Jesus alertara as multidões: quando fosse elevado da terra atrairia todas as criaturas. Por isso, ao sentir o terremoto e tudo que acontecia, ao assistir a esse espetáculo, aquelas testemunhas se retiraram batendo no peito e reconhecendo o pecado que haviam cometido, em sinal de arrependimento.

Com tais atitudes reconheciam a injusta morte d’Aquele que criou o céu e a terra; ao mesmo tempo puderam ver nesta morte, ainda sem conhecer a Ressurreição que logo viria, a glória e o triunfo daquele que passara a vida fazendo o bem.

Por outro lado, os pagãos reconheceram em altos brados que Jesus era inocente. O povo judeu se limitava apenas em bater no peito, indo embora silenciosamente. O covarde juiz Pôncio Pilatos se declarou inocente.

Também o centurião, vendo e sentindo toda aquela conturbação da natureza, creu que Jesus era inocente. O traidor reconheceu a inocência de Jesus, se enforcando, e com isso admitiu o próprio crime. Enfim, toda a natureza convulsionada se manifestou ao testemunhar a morte do seu Criador.


Com o estremecimento da terra, os sepulcros se abriram, e os santos ressuscitaram para denunciar o grande pecado do assassinato de um Deus. Enquanto isso, a grande exceção, as autoridades religiosas, os altos dignitários que dominavam a Sinagoga, permaneceram inflexíveis no crime e na sua maldade, pela sua dureza de coração.

Quantas circunstâncias extraordinárias se passaram na hora da morte de Jesus! Qual é o significado que tudo isso traz para os nossos dias? Se não tivermos uma fé profunda e sincera, faltarão as necessárias disposições de alma para nos conduzir, com auxílio da graça divina, à santidade.

Nada entenderemos da conexão desse magno acontecimento com a situação de nossos dias, que representa igualmente a paixão da própria Santa Igreja Católica. O que se passou naquele então, com o povo judeu, ocorre igualmente em nossos dias com a indiferença e condescendência diante dos erros difundidos na sociedade.

Para as pessoas mais ilustradas, a situação ainda é agravada pela capacidade que têm de perceber e entender as coisas. Eles possuem meios de avaliar os significados que levam à existência de um processo sutil, mas inexorável, da autodemolição em curso no interior da própria Igreja. Se não o fazem, é por miopia culposa.

Não pretendendo alongar mais a meditação, mas menciono apenas mais um fato, ou seja, o engajamento de tantos elementos do clero com a esquerda, com o comunismo, que escandaliza o orbe católico e põe, bem à mostra, a tragédia em que vive a nossa santa Mãe, a Igreja.

Infelizmente, tal processo não foi bem percebido em seu início, o que agrava esse dramático e misterioso processo. Para muitos, passou despercebida toda a manobra; como pode ter acontecido tão profunda infiltração de gente má nas fileiras da Hierarquia sagrada com a consequente difusão e adoção de tantas ideias revolucionárias?

Talvez pensando nisso foi que o grande papa do início do século passado, São Pio X, afirmava que não precisamos ir muito longe para encontrar os inimigos da Igreja, pois eles se encontram na verdade dentro d’Ela. Assim ocorreu também no tempo de Nosso Senhor vivendo em meio de seu povo.


O pecado imenso, para se chegar ao ponto de tirar a vida de um Deus foi enorme e se chama deicídio. O mesmo sucede agora, em nossos dias, a ponto de destruir a instituição, se Ela não fosse imortal.

Este é o ponto principal de nossa reflexão de Semana Santa em pleno século XXI: a tentativa, aliás vã, de demolir a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana. Que a Santíssima Virgem de Aparecida, nossa Padroeira, hoje tão esquecida, nos conceda a graça de cultivarmos nos nossos corações, uma profunda união com as dores que a Mãe Santíssima sofreu, junto de seu Filho.

Ela, por essa forma, assumiu o papel de colaboradora principal na Redenção do gênero humano a ponto de ser chamada a justo título de Corredentora, objetivo do maior acontecimento da história: a Encarnação, Paixão e Morte do Filho de Deus, a segunda Pessoa da Santíssima Trindade.

 

 

sábado, 11 de fevereiro de 2023

 

LIÇÃO DO SILÊNCIO

Padre David Francisquini


Macário era um rico comerciante egípcio que, ainda no início do cristianismo, converteu-se à Fé cristã, depois se tornou monge ermitão e foi para Tebaida, onde se santificou.

Hoje diríamos que Tebaida é um nome carregado de forte significado! Era uma região do Alto Egito, inspirou um poema épico latino, e ficou associada a situações de silêncio e solidão profunda. Viver numa Tebaida significa uma vida apartada do mundo, coisa para anacoretas no deserto. Curiosamente, naqueles dias muitas pessoas eram atraídas pelo silêncio, pelo recolhimento, pelo mistério e pela elevação espiritual, associados a essa corajosa empreitada.

Tanto é que, no local para onde foi o jovem Macário, já havia outros eremitas. Com o passar do tempo, sem deixar de dedicar a quase totalidade de seu tempo à meditação e às orações, encontravam-se para colóquios, uns ensinando aos outros, aconselhando ou orientando. Há um provérbio popular, muito apropriado e revestido de sabedoria, que Deus se comunica através do silêncio, no interior de seus corações, e se transforma em grandes realizações.

 O santo percebeu  em alguns o desejo de abandonar aquela árida solidão, a fim de se dedicarem ao trabalho de apostolado. Pensavam na difusão de suas cogitações espirituais para outras pessoas, conquistando almas para Deus nas cidades. Nada contra isso...claro, mas São Macário intuiu que podiam talvez estar sendo atraídos para fora do campo de sua vocação específica, considerando a enorme dificuldade que havia representado, para muitos, a decisão de isolamento.

Para estes, escreveu uma historieta do barbeiro de uma pequena cidade, que cobrava três moedas para fazer cada barba. Ao final do dia, ganhava dinheiro suficiente para quitar ou atender razoavelmente as suas necessidades; ainda economizava pequenas quantias para o futuro, sempre incerto.

O barbeiro ouviu que em uma cidade próxima dali, maior, o preço para uma barba era o dobro do que recebia. Depois de pensar um pouco, decidiu ser mais vantajoso abandonar sua clientela e se mudar. Com certeza, obteria mais lucro com menos trabalho.

Vendeu o que possuía e foi se estabelecer lá. De fato, ele recebia uma quantia bem maior de dinheiro, mas quando ia ao mercado comprar o que precisava, percebeu que as mercadorias eram mais caras! Depois das compras, não lhe sobrava dinheiro...

Não tardou a reconhecer o erro e voltou à origem, retomou seu trabalho economisando para a velhice. Macário concluiu sua singela história afirmando que as pessoas deveriam se contentar com os pequenos frutos obtidos na solidão, pois a ganância de enriquecimento exagerado, nem sempre é um bom negócio para o futuro.

 

Como São Macário escrevia para amigos de mesma vocação, eis a moral de seu conto: era preferível permanecer no caminho da própria santificação no deserto a tentar salvar almas na cidade. Em meio a contínuas diversões e dispersões, eles acabariam por perder o espírito de recolhimento que os havia conduzido àqueles êremos. Vocação preciosa e rara, que, inclusive, não é para todo mundo.

A propósito, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira teceu comentários para uma platéia jovem, sublinhando que a melhor coisa na vida é unir a alma a Deus; para isso, levar uma vida que tenha lugar para reflexão, inclua tempo para meditação e oração. Portanto, quem tem tal elevada vocação como núcleo de sua existência, recebe mais de Deus do que aqueles chamados a agir na sociedade civil, nas atividades comuns da maioria dos homens. Mas a todos é necessária a vida interior, o tempo de silêncio da alma.

Para o grande pensador católico, essa distinção é relevante sempre. Mas é especialmente oportuno considerá-la hoje, pois o homem moderno parece ter sido preparado para não compreender o papel da reflexão e da meditação, quanto mais da solidão! Ele é um ateu prático, vive como se Deus não existisse. E a pressão contrária é tanto maior quanto mais jovem é o público observado.

Podemos constatar isso, dizia Dr. Plinio, no estilo de vida da maioria das pessoas ao nosso redor. Elas estão sempre ansiosas para ouvir novidades, transmitir suas impressões ou tentando impressionar os outros. Além dos acessórios hoje inseparáveis, como o  computador e o celular. E ainda têm em casa a televisão, para ocupar o que lhes reste de capacidade para fixar atenção, sempre para fora de si.

Ao lerem, não refletem no que lêem. Se estão sentadas é apenas para tomarem fôlego a fim de continuar a correria. Esquecem-se que a essência da vida exige que a pessoa se isole algum tempo! Para afinar suas observações, ordenar seus pensamentos e analisar tudo à luz dos princípios que aprendeu. Isso constitui um patrimônio, uma lente pela qual analisa as coisas e chega a conclusões. Serão máximas morais ou regras gerais de filosofia de vida, que elevam a mente a Deus. Contudo, o homem moderno abomina o isolamento e assim se distancia de Deus.

São raros aqueles que fazem um esforço interior para ordenar seus pensamentos. Eles o evitam não porque estejam muito ocupados, mas porque rejeitam aquele tipo de esforço... Viciaram-se na excitação da atividade constante, tornando-se mesmo, às vezes,  o extremo oposto daquilo que deveriam ser.

A lição de São Macário não é para que todos se tornem anacoretas como ele. É um apelo para que sejamos recolhidos, mesmo que vivamos ativamente na sociedade. A pessoa deve valorizar o silêncio, encontrando tempo para recolhimento e contemplação das coisas de Deus. Na contemplação dos acontecimentos do dia a dia, podemos tirar delas boas lições para a vida. O silêncio é a alma da reflexão, pois no silêncio e no recolhimento que se pode aquilatar o rumo da história.

Só assim ela estará preparando seu caminho para a glória eterna. Para aqueles dentre nós que tiverem na alma um pouco dessa agitação revolucionária, o bom senso manda rezar pedindo esta graça, e evitar ambientes de excitação e turbulência.

Aos meus caros leitores, peço que reservem um tempo, ainda que alguns minutos por dia, ou mesmo meia hora, e fiquem com frequência sozinhos e quietos, pois o silêncio será o primeiro passo para uma alma se tornar profunda. Que São Macário nos ajude.