terça-feira, 23 de dezembro de 2025

De Nossa Senhora nunca é demasiado falar II

 

De Nossa Senhora nunca é demasiado falar II

Pe. David Francisquini

 


Não sem apreensão, li a nota da Congregação da Doutrina da Fé emitida pelo Cardeal Victor Manoel Fernandes a respeito da devoção a Nossa Senhora, pois tudo o que se refere à Filha dileta de Deus Pai, à Mãe amável de Deus Filho e à Esposa fidelíssima do Espírito Santo toca numa sublimidade quase indizível, por ser Ela a obra-prima da Criação. Com efeito, a Virgem é o primeiro e principal membro da Igreja, e ao mesmo tempo está acima dela, intra Christum et Ecclesiam, como ensinou São Bernardo.

Não foi a Congregação da Doutrina da Fé impelida por nenhuma questão premente no orbe católico para tratar de assunto tão assente na doutrina da Igreja, como Nossa Senhora Medianeira de todas as Graças, bem como Co-redentora do gênero humano junto de seu divino Filho. Portanto, causa estranheza a publicação da recente Nota doutrinal sobre alguns títulos marianos referidos à cooperação de Maria na obra da Salvação, ao julgar sempre inoportuno” o título de Co-redentora e “arriscado” o de Medianeira de todas as graças, para Nossa Senhora.

Parece estar mais preocupado em criticar e afastar os fiéis da devoção a Nossa Senhora do que promovê-la. Sinto-me ser eu o compelido a expressar o que penso e aprendi sobre a Mãe de Deus. Ter devoção a Nossa Senhora não deixa de lado a Pessoa Adorável de Jesus Cristo, pelo contrário. Documentos tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, como os santos padres e doutores defendem, atestam que Nossa Senhora é única diante do plano da salvação.

O próprio Deus pôs seus olhares de benevolência nesta criatura privilegiada que é o elo ou aliança entre o Criador e as criaturas, entre Deus e os homens. Ela sempre foi reconhecida pelos fiéis ao longo da História. Sob quantos títulos Ela é lembrada, honrada e dignificada na Ladainha Lauretana, ora como Virgem das virgens, Mãe da divina graça, ou ainda como Rainha dos anjos, dos patriarcas, dos profetas, de todos os santos...

Creio ser de São Luís Grignion de Montfort a expressão de Maria nunquam satis (nunca é demasiado) falar. Este mesmo santo afirma que se Deus quis se servir d’Ela para vir ao mundo, é por meio d’Ela que Ele deseja salvá-lo.  Negar isso é negar a evidência, pois não se pode separar da chama a luz e o calor, a aurora do sol nascente. Jesus é todo de Maria e Maria é toda de Jesus. Jesus utilizou de Maria para vir a nós e A estabeleceu para levar a Ele.



A conexão entre mãe e filho é uma determinação do próprio Criador que quis que assim fosse. Maria esteve sempre presente na vida de Jesus. Se Jesus é o único Salvador e Mediador, não foi sem Maria, que quis começar a sua missão aqui na terra, ao realizar seu primeiro milagre nas bodas de Caná. Essa conexão íntima entre Jesus e Maria não pode ser negada, sob pena de aderir às seitas protestantes. [PC1] Santo Afonso de Ligório lutou contra as ideias jansenistas que minimizavam a devoção a Nossa Senhora, a tal ponto que desenvolveu uma devoção séria e com princípios a Maria Santíssima.

Constatamos esta verdade no seu livro Glórias de Maria Santíssima. Nossa Senhora quis estar aos pés da Cruz por dever de sua missão de Mãe a fim de oferecer o sacrifício juntamente com seu Divino Filho, para a redenção do gênero humano, e assim gerar novos filhos.  Portanto, mereceu ser Medianeira e co-Redentora do gênero humano. Papel único e inconfundível, estando intimamente ligada ao seu filho para a salvação do mundo. Se da primeira mulher, Eva, veio a morte, da segunda Eva, veio a vida, a salvação. Se de Eva veio a desobediência para a humanidade toda, da nova Eva veio a cheia de graça, Maria.



Deus quis se servir de Maria para que d’Ela viesse o Salvador do mundo, e a honrou com todas as graças e perfeições para que assim o Filho de Deus se fizesse homem, habitasse entre nós e nos redimisse. Não desagrademos ao Filho criando embaraços para a Mãe, pois se quisermos agradar ao Filho tratemos da melhor maneira possível a sua Mãe. Assim seja, por todos os séculos dos séculos.


 [PC1]ostra

quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

De Maria nunca é demasiado falar!

 

De Maria nunca é demasiado falar!

 

*Pe. David Francisquini

 

Com a leitura do novo documento emitido pelo Cardeal Víctor Manuel Fernández, prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, sobre a Santíssima Virgem, pretendo hoje estender-me a respeito do tema que fez estremecer o coração de muitos fiéis, não apenas no Brasil, mas em todo orbe católico, tendo em vista a festa da Imaculada Conceição que ocorre no dia 8 de dezembro.

Com efeito, segundo São Luís Maria Grignion de Montfort, o Altíssimo, o Incompreensível, o Inacessível, Aquele que é, quis vir a nós, pequenos vermes da terra, que nada somos. Como se fez isto? O Altíssimo desceu perfeita e divinamente até nós por meio da humilde Maria, sem nada perder de sua divindade e santidade; e é por Maria que os pequeninos devem subir perfeita e divinamente ao Altíssimo, sem recear coisa alguma.

Ao meditarmos na passagem do Gênesis 3:1, "porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela", na qual o próprio Deus solenemente colocou uma inimizade eterna entre a serpente (símbolo do mal e Satanás) e a humanidade, simbolizada pela mulher e sua descendência, concluímos que um descendente da mulher esmagará a cabeça da serpente, enquanto a serpente ferirá o calcanhar desse descendente. Mas, por fim, Ela esmagará a cabeça da serpente.

A missão de Nossa Senhora está ligada e associada à de seu Divino Filho, na cooperação dessa luta e dessa vitória, na aquisição de todas as graças e distribuição de todas elas. Essa missão está associada e unida por um estreitíssimo e insolúvel vínculo entre Cristo e toda obra da Redenção, na luta e no triunfo sobre o inferno. Essa cooperação se estende a todas as graças, porque Maria foi escolhida por Deus para essa missão.

Para confirmar isso, o Papa Bento XV afirma que a Virgem sofreu com o filho que sofria, padeceu uma espécie de morte com o filho moribundo para a nossa salvação. Corredentora com Cristo quer dizer ter colaborado com tudo que constitui a obra da Redenção. Por sua vez, São Pio X afirma um perfeito consórcio das dores entre Cristo e Maria. 

Pio IX ressalta a perpétua união nas dores e nos trabalhos do Filho. São Bernado assegura que Maria é o aqueduto ou o pescoço que une a cabeça aos membros para transmitir a força e o vigor a todo o organismo espiritual e moral, que é a Igreja, tornando-a resplandecente e sem rugas, no dizer de São Paulo. E com isso desenvolve a comunicação dos frutos da Paixão ao Corpo Místico de Cristo.

Para entender bem o plano de Deus, vamos tomar alguns exemplos que constituem uma confirmação luminosa do plano de Deus a respeito de Maria: a visita de Nossa Senhora a Santa Isabel, as bodas de Caná, a descida do Espírito Santo no dia de Pentecostes.

Bastou ecoar a voz de Maria para que o menino João Batista fosse santificado e ficado cheio de Espírito Santo no ventre de Santa Isabel, enquanto sua mãe e o menino exultavam de alegria; nas bodas de Caná a voz de Maria foi essencial para que a água se transformasse em vinho. Enquanto no Cenáculo a voz de Maria foi o instrumento para que o Espírito Santo descesse sobre a Igreja e exercesse a sua ação regeneradora e santificante.


Essa foi a conduta da ação posta pelo próprio Deus na vida de cada um de seus filhos e da própria Igreja. Maria é imprescindível na vida da Igreja e de todos nós, sendo a inimiga número um do demônio ao esmagar as heresias e os erros em todos os tempos, exaltando e dando vitórias sobre vitórias à Santa Igreja, isto é, o Corpo Místico de Cristo.

Quando Nossa Senhora anunciou  em Fátima o seu triunfo e de que haverá um tempo de paz, está a nos dizer que seu reino vai triunfar com sua vitória sobre o dragão, que é o demônio e seus asseclas. Esse maldito, desde o seu “non serviam” na sua rebelião contra Deus, não conheceu mais vitórias, tornando-se o eterno derrotado.

Essa é a nossa esperança na festa da Imaculada Conceição. Que o seu Imaculado Coração -- que simboliza o tesouro das graças recebidas e a ser distribuídas -- triunfe logo mais uma vez sobre o inimigo infernal que procura sem cessar diminuir-lhe a glória!

 

*Sacerdote da Igreja do Imaculado Coração de Maria - Cardoso Moreira-RJ

domingo, 7 de julho de 2024

 Peçamos a coragem de dizer “não”

Pe. David Francisquini

Pilatos, o governador romano que cometeu o crime mais monstruoso de toda a História, não foi movido a praticá-lo por qualquer ódio ideológico; tampouco visava à conquista de novas riquezas, nem a comprazer alguma Salomé. Neste particular difere de Herodes, que para salvaguardar seu trono, seu bem-estar e suas riquezas, perpetrou covardemente a matança dos Santos Inocentes.

Aliás, os grandes tiranos da História – Lenine, Stalin, Hitler, entre outros – por ambição ideológica e ódio a Deus, à Igreja e à Fé, inundaram a terra com o sangue de mártires.

Pilatos, mesmo afirmando que não encontrou crime algum em Nosso Senhor Jesus Cristo, entretanto O condenou. O que o teria movido?

Plinio Corrêa de Oliveira considera numa de suas meditações sobre a Via Sacra que Pilatos foi levado a condenar o Justo pelo receio de desagradar a César Augusto. Portanto, não queria complicação política que pudesse indispor o povo judeu contra o jugo romano. Pilatos foi mole, indolente, numa palavra, cúmplice daquela pérfida orquestração contra a vida de Nosso Senhor.

Ao querer contemporizar com a mentalidade que grassava no povo judeu, pareceu-lhe que condenando Nosso Senhor à flagelação e à coroação de espinhos, contentaria com isso os judeus, livrando-O da sentença de morte.

Utilizou-se da política característica dos covardes, isto é, de “ceder para não perder”, sempre condenada ao fracasso mais rotundo. Depois de flagelado e “coroado”, Pilatos apresentou Jesus à populaça açulada, mas ela não se contentou e exigiu do governador a morte do Justo.

Grande lição. Quanto mais se cede, mais o inimigo prevalece. Em muitas ocasiões, é preciso saber dizer um “não” categórico, pois não se pode fazer concessões, nem mesmo contemporizar com o mal, pois entre a verdade e o erro, entre o bem e o mal há um ódio irreconciliável. Não há paz entre os que são de Deus e os que são da serpente, entre a raça da Virgem e a do demônio.

Pilatos não quis seguir a via da verdade, da inocência, as regras de um julgamento reto e justo, mas quis ajustar a verdade ao erro, a justiça à mentira e à iniquidade. Com o gesto infame de “lavar as mãos”, quis isentar-se da culpa pelo sangue inocente que seria derramado. E para estar bem com todos, entregou Nosso Senhor ao populacho para ser crucificado. 

Partindo de um governador romano que na condição de juiz reprovasse o Inocente, caberia apenas uma condenação: a morte de cruz, pois não podia haver um crime mais ignominioso e que causasse maiores sofrimentos do que esse.


São Tomás afirma que o Homem-Deus quis morrer ostensivamente pregado na cruz, pois entre todos os gêneros de morte, nenhum era mais execrável. Ele o fez para ostentar como o pecado é ignominioso.

Esse gênero de morte foi conveniente por excelência para a satisfação dos pecados de nossos primeiros pais, por terem comido da árvore contra a vontade de Deus. Convinha que, para satisfazer esse pecado e obedecer à vontade do Padre Eterno, Cristo consentisse em ser pregado no madeiro para recuperar o que Adão perdeu por desobediência.

A sua divina presença santificou a terra. Andou sobre ela para difundir o Evangelho e operar estupendos milagres, purificando-a com o preciosíssimo sangue vertido de seu lado chagado.  Ao ser elevado na Cruz, santificou o ar que envolvia a terra e, assim, atraiu a Si todas as coisas.

A figura da cruz, diz Santo Tomás, ao se expandir de um centro único em quatro extremos opostos, significa o poder e a providência de Nosso Senhor esparsos por toda parte, que dela pendente com uma mão atrai o povo fiel e com a outra o povo pagão.

Ao ser condenado à morte injusta na cruz, Jesus Cristo tinha escolhido esse gênero de morte para que fosse o Mestre de todas as dimensões – da largura, da altura, do comprimento e da profundidade –, como símbolo das boas obras, da estabilidade e da perseverança, da esperança perfeita e da graça gratuita.

Como Mestre da Verdade, prega em sua Cátedra, ou seja, a Cruz: “Quem quiser vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”.

terça-feira, 31 de outubro de 2023

O novo rito da Missa não é substancialmente idêntico ao anterior?

Discussão sobre Traditionis Custodes: Dom Jerônimo alega que o Papa Francisco busca unificar a liturgia latina, afirmando que não existem dois missais, apenas uma forma precedente e uma forma atual do mesmo livro. Essa afirmação corresponde com a realidade?

Fonte: Revista Catolicismo, Nº 873, Setembro/2023


Pergunta — Frequento a missa tradicional e tive uma discussão com um colega de faculdade a respeito do motu próprio Traditionis Custodes. Talvez por falta de argumentos, ele acabou insistindo muito para que eu não deixasse de ver no Youtube um vídeo do 1° Colóquio Internacional de Liturgia da Universidade Católica do Pernambuco sobre a Eucaristia como sinal de reconciliação. E que aí eu procurasse a mesma temática sobre Traditionis Custodes, que teve como um dos palestrantes o beneditino Dom Jerônimo Pereira. Vi a matéria. Em síntese, ele afirmou que que o Papa Francisco não fez senão reassumir o desejo de São Pio V de que a Igreja latina tivesse uma única forma ritual e por isso promulgou o missal de 1570. Mas o que me chamou a atenção foi ele ter afirmado categoricamente que é intelectualmente “desonesto” dizer que existem dois missais, porque se trataria apenas de “uma forma precedente e de uma forma atual de um único livro”. Essa afirmação, que segundo Dom Jerônimo estaria na base do motu proprio Traditionis Custodes,corresponde com a realidade?

 

Resposta — Agradeço a pergunta do missivista e lhe devolvo a pergunta: é honesto dizer que o novo missal de Paulo VI é apenas a forma atual de um único livro, cuja versão pré-conciliar é o missal de 1962?

 

Senão vejamos:

 

os ritos de entrada constituem em grande parte uma criação inteiramente nova;

o belíssimo Ofertório que prepara e prefigura a imolação incruenta da Consagração foi substituído por uma Apresentação das Oferendas inspirada nas Beràkhôth do Kiddush, ou seja, nas bênçãos da ceia pascal dos judeus que não têm nada de especificamente católico;

o antigo Canon romano foi profundamente modificado e foram redigidas três novas orações eucarísticas compostas seguindo modelos orientais e galicanos que, ao menos pelo seu estilo, representam um corpo estranho no rito romano;

na consagração do vinho foram retiradas, sem motivo, as palavras mysterium fidei  sem motivo, das palavras mysterium fidei (cf. I Tim. III, 9) — inseridas nas palavras da consagração em torno do século VI — para transformá-las num apelo do padre depois da consagração, que jamais esteve em uso, seguido de uma aclamação da assembleia que nunca existiu no rito latino e que representa uma ruptura abrupta no relato;

das 1.347 orações no Rito Romano tradicional, 669 foram extirpadas (49,7%), 307 foram editadas (23,8%), 206 foram combinadas com outras para fazer uma nova (15,3%) e apenas 165 permaneceram inalteradas (12,2%) no rito novo;

a organização das leituras, que remontava a mais de mil anos, foi radicalmente modificada em aras de ampla reorganização do ano litúrgico e do santoral que não deixou subsistir praticamente nada do estado anterior;

as numerosas prescrições de “escolhas possíveis” contribuíram para introduzir o arbitrário na organização de uma missa cuja celebração anterior era estritamente regulamentada.

É honesto dizer que o novo missal de Paulo VI é apenas a forma atual de um único livro, quando:

 

o Pe. Pierre Jounel, um dos especialistas do Consilium que preparou a reforma litúrgica, reconheceu ao jornal La Croix que “a Segunda [Oração Eucarística] foi retomada da Oração Eucarística de [Santo] Hipólito (século III)”, que “a Terceira se inspirou no esquema das liturgias orientais” e que “a Quarta foi elaborada numa noite, por uma pequena equipe em torno do Pe. Gelineau”?

esse mesmo Pe. Gelineau, um dos redatores do novo rito, confessou que “na verdade, é uma outra liturgia da Missa” e que “é preciso dizê-lo sem rodeios: o rito romano tal como nós o conhecíamos não existe mais, ele foi destruído”?

o principal artífice da reforma, Dom Annbale Bugnini, declarou que “a liturgia está em meio a um período de transição”, porque “não se trata apenas de retocar uma obra de arte de grande valor, mas às vezes é necessário dar novas estruturas a ritos inteiros”, pelo que se trata “de uma restauração fundamental, diria quase de uma reformulação e, em certos pontos, de uma verdadeira nova criação”?

o próprio Paulo VI, no domingo anterior à entrada em vigor, afirmou tratar-se de um “novo rito da Missa”, uma mudança “que afeta nosso patrimônio religioso hereditário”?

o então cardeal Joseph Ratzinger reconheceu que o problema do novo Missal reside “na criação de um livro inteiramente novo, embora a partir de material antigo”?

um dos maiores estudiosos da Liturgia do século XX, Mons. Klaus Gamber, deplorou que o rito romano tradicional “foi destruído”, porque “os reformadores queriam uma liturgia completamente nova, uma liturgia que diferisse da tradicional tanto no espírito quanto na forma”?

“Nem mesmo a autoridade suprema da Igreja pode mudar a liturgia”

Não há dúvida de que há continuidade quanto à essência do sacramento, pois em ambos os ritos realmente se celebra uma Santa Missa válida; mas que há uma ruptura quanto ao rito é demonstrado acima (além das deficiências teológicas apontadas por muitos estudiosos e, em particular, pelo Breve estudo crítico enviado a Paulo VI pelos cardeais Ottaviani e Bacci).

Livro: A reforma litúrgica por Annibale Bugnini

Isso posto, a questão que surge imperativamente dessa constatação é se a reforma que impôs essa ruptura ritual foi legítima. Da qual, por sua vez, surge uma segunda pergunta: tem o Papa Francisco o poder de revogar um rito tradicional e declarar, como o fez no motu proprio Traditionis Custodes, que o missal de Paulo VI “é a única expressão da lex orandi do rito romano”?


A respeito da primeira questão, convém citar o que escreveu recentemente o canonista Frei Reginaldo-Maria Rivoire, no seu estudo Omotu proprio Traditionis Custodes posto à prova da racionalidade jurídica:

“Como sugere a etimologia, o que é legítimo (ou lícito) é o que foi legalmente estabelecido. Isso pode ser entendido de várias maneiras. Um ato jurídico (seja administrativo, legislativo ou judicial) é legítimo se for formulado de acordo com as formalidades e exigências da lei (cf. cân. 124). No entanto, mais fundamentalmente, tal ato deve exibir aqueles elementos constitutivos que lhe são essenciais. Assim, um ato jurídico normativo pode ser editado pela autoridade competente apenas dentro de sua própria área de jurisdição, a fim de regular as coisas que são de seu domínio. Ainda que cumpridas as formalidades legais, um enunciado normativo proferido por quem não tem domínio sobre a realidade que pretende regular, não é uma norma jurídica, mas, quando muito, uma norma proposta.

 

“Consequentemente, um ato normativo só é legítimo se for conforme à natureza das coisas, porque tal natureza não cai sob o domínio dos homens. Nenhuma autoridade humana pode estabelecer uma ordem que vá contra essa realidade. Uma ‘norma jurídica’ que fosse contrária à natureza das coisas não seria racional e, de fato, não seria norma alguma. Tal norma não introduz uma ordem; introduz uma desordem. Não é justa, mas sim vis [força] e iniuria [ferimento].

 

“Procuremos aplicar estes princípios à reforma litúrgica de Paulo VI. Considerando apenas o novo Missal, ninguém contesta que foi promulgado pela autoridade legítima segundo as formas legais, ou seja, pelo Papa Paulo VI na Constituição Apostólica Missale Romanum de 3 de abril de 1969. […]

 

“A verdadeira questão é, antes, a dos limites da autoridade do Sumo Pontífice em matéria litúrgica. Nos tempos modernos, no Ocidente, os papas se apropriaram do direito de legislar de maneira cada vez mais detalhada e ampla em matéria litúrgica. […] É verdade que o poder do bispo de Roma é ‘supremo’, no sentido de que não está subordinado a nenhum poder humano, e ‘pleno’, no sentido de que possui em sua plenitude todo o poder que Cristo deu à sua Igreja para ensinar, santificar e governar. Mas esse poder não é absoluto e ilimitado, como se o pensamento ou a vontade do papa fossem lei. Está ao serviço da Tradição santa e viva da Igreja, que deve conservar e transmitir sempre. Isto é especialmente verdadeiro em relação à liturgia, que é um dos elementos constitutivos daquela Tradição. O cardeal Ratzinger certa vez explicou isso usando a impressionante imagem de um jardineiro em seu jardim, em oposição a um técnico que fabrica máquinas. […]

 

“Isso é resumido no Catecismo da Igreja Católica, n. 1125: ‘Nem mesmo a autoridade suprema da Igreja pode mudar a liturgia a seu bel-prazer, mas somente na obediência da fé e no respeito religioso do mistério da liturgia’.

 

“Diante do exposto, entende-se que uma lei litúrgica pontifícia que não respeitasse a própria natureza da liturgia não seria uma lei, uma regula iuris, mas sim uma corruptela iuris, uma corrupção da lei, ainda que fosse garantida por todas as formalidades jurídicas. Faltaria a ela aquele caráter fundamental de qualquer lei que é a racionalidade. Uma vez que o ato de legislar é um ato da razão, ele próprio é condicionado, ‘normatizado’, pela natureza das coisas. […]

 

“Pode haver normas litúrgicas impróprias, questionáveis, defeituosas sem que sejam necessariamente irracionais nem, por conseguinte, ilegítimas. […] No entanto, uma norma totalmente inadequada à realidade que pretende ordenar carece de legitimidade. E consideramos contrário à própria natureza de um rito litúrgico que seja fabricado ou manufaturado. […]

 

“Assim, independentemente da consideração de suas graves deficiências rituais intrínsecas, que o tornam uma expressão insatisfatória da Lex credendi, o simples fato de o Novus Ordo Missæ ser um rito novo e fabricado é suficiente para o canonista questionar sua legitimidade. [o destaque é nosso].

 

“Dito isto, mesmo que alguém admitisse (para fins de argumentação) que um novo rito autêntico pudesse ser criado do zero pela vontade de um papa, esse novo rito só poderia ser opcional e não poderia simplesmente substituir um rito pré-existente”.

 

O missal tradicional nunca foi revogado jurídicamente

 

Essa última afirmação responde pela negativa à segunda pergunta que levantei, ou seja, se o Papa Francisco tem o poder de declarar em Traditionis Custodes que o missal de Paulo VI “é a única expressão da Lex orandi do rito romano”. Obviamente que não tem. Tanto mais quanto Bento XVI, na carta que acompanhava seu motu proprio Summorum Pontificum, escreveu: “Quanto ao uso do Missal de 1962 como Forma Extraordinária da liturgia da Missa, gostaria de chamar a atenção para o fato de que este Missal nunca foi revogado juridicamente e, consequentemente, em princípio, sempre foi permitido.”

 

Convém, aliás, encerrar esta resposta com uma consideração de senso comum, feita pelo Frei Reginaldo Maria Rivoire em seu estudo: “Há uma contradição por parte dos reformadores em sustentar que o novo rito é substancialmente idêntico ao anterior [como fez Dom Jerônimo Pereira OSB, na sua palestra], enquanto ao mesmo tempo julgam a celebração de acordo com uma edição anterior do Missal anormal, ou mesmo ilícita sem permissão excepcional”.

 

© 2023 Instituto Plinio Corrêa de Oliveira. Todos os direitos reservados

Link original: https://www.ipco.org.br/o-novo-rito-da-missa-nao-e-substancialmente-identico-ao-anterior

terça-feira, 9 de maio de 2023

 

TEMPO DE PÁSCOA

 

*Pe. David Francisquini

 

Encontramo-nos no tempo pascal, tempo rico em lições. Há vários pontos de sumo interesse nos relatos evangélicos a serem considerados. A misteriosa aparição a Santa Maria Madalena, a corrida de Pedro e João até o sepulcro, e outros detalhes relevantes. Hoje, porém, iremos nos ater no campo da fé, a Pedro e ao encontro com os discípulos de Emaús.

O nosso Divino Mestre ressuscitou dentre os mortos para prosseguir sua missão de jogar a semente da fé nos corações, confirmando a todos nesta mesma fé e mais, no seu espírito. Para isto multiplicou suas visitas, aparecendo várias vezes aos apóstolos e a seus demais discípulos.

Por isso manifestou-se primeiramente ao mais digno e fiel de todos eles, que era Simão Pedro. Visava consolidar uma fidelidade a toda a prova, para que não ficasse indeciso ou confuso, de modo a não tomar posição inadequada com a súbita e inesperada aparição de Cristo.

Foi Pedro que havia reconhecido e confessado a sua divindade, então veio a ele para consolá-lo, confortá-lo, evitando que caísse em desespero ou desilusão. Aliás, não foi sem razão que alguns dos apóstolos não creram no relato dos dois discípulos de Emaús, como narra Marcos; no entanto, por sua vez São Lucas diz o contrário, afirmando que ‘alguns’ dos discípulos não creram nesse relato daqueles dois discípulos.

São Pedro fora testemunha de muitos milagres. Assim, não se deve imaginar que participasse da falta da fé na ressurreição de Cristo; então Cristo apareceu a ele antes dos demais discípulos.

Nesse episódio tão cheio de significado, desejo ressaltar que os discípulos de Emaús estavam com seus olhos cerrados, obscurecidos, e não puderam, como também ocorreu com Madalena, reconhecer de pronto a Jesus ao encontrá-Lo.

Mas o Salvador prepara a mente deles, ao dar a entender que iria para mais longe naquele caminho. Com isso, dava-lhes ocasião para que aprendessem a se exercitar na virtude da caridade, e assim pudessem saber quem Ele era, justamente no momento da fração do pão.

Aqueles homens, que tinham talvez pouca fé no Salvador, enveredaram pelos caminhos da solicitude e da caridade, quando o transeunte ao cair da noite se dispôs ir mais longe. Ele conquistou os corações daqueles discípulos ao dar-lhes oportunidade de exercitar a virtude da caridade; só assim passaram a compreender que Jesus estava vivo e presente, ao recebê-lo generosamente em sua casa.

Cristo encontra acolhida entre os seus discípulos e no repartir o pão é reconhecido ao estar à mesa. Ao caminhar com eles, seus olhos estavam cerrados, algo os impedia de reconhecer o que viam, como se uma névoa ou cerração os impedisse de ver claramente. Havia em suas almas como que um obstáculo para reconhecer quem era Jesus, aquele que fora glorificado com a Ressurreição.

Foi reconhecido por seus discípulos, ao hospedar o mestre, por um gesto inequívoco que tinham gravado na memória: quando o Salvador procedeu ao partir do pão, como recentemente havia feito em sua presença, na Santa Ceia. Assim devemos nos dispor, interiormente, também nós, ao receber Jesus na Sagrada Comunhão.

Santo Agostinho afirma que o homem instruído nas coisas da fé, quando partilha seus bens maiores com aquele que recebe instrução, pode estar certo de ter Jesus consigo. Diz ainda, o grande doutor, “com efeito os discípulos de Emaús receberam o ensinamento da palavra quando lhes explicava a Sagrada Escritura.

E porque praticavam a hospitalidade, mereceram conhecer na fração do pão, o que não haviam reconhecido quando lhes explicava as escrituras: de fato, não são justos diante de Deus os que ouvem a lei, mas os que observam a lei, aqueles que serão justificados”.

Possamos também nós, neste momento de tantas trevas no ambiente espiritual, em meio à imensa crise moral e religiosa de nossos dias, permanecer ancorados na firme convicção de fé em Jesus ressuscitado.

Assim lograremos receber a imensa graça da fidelidade, apesar de nossas fraquezas e limitações, de modo a merecermos, como prometeu o Senhor na carta à igreja de Filadélfia: porque foste fraca, mas fiel, eis que ponho diante de ti uma porta que abre e ninguém fecha, que fecha e ninguém abre.

Essa a imensa recompensa que devemos pedir à Santíssima Virgem, Medianeira Universal de todas as graças, neste tempo pascal.