Lex orandi lex credendi
Padre
David Francisquini
É fato que em muitos lugares
a missa tradicional não desfruta de espaço nem de abertura para que seus seguidores
possam assisti-la e os sacerdotes celebrá-la. No entanto, já no documento Ecclesia Dei, João Paulo II pedia
compreensão, bondade, abertura e acolhimento à porção de fiéis que amam os
tesouros da liturgia, que remonta ao tempo dos apóstolos.
Se de um lado surpreende o
número crescente de pessoas desejosas de usufruir da liberdade de se abeberarem
da liturgia sagrada, na qual se encontram os tesouros do culto católico, de
outro lado existem incompreensões e bloqueios por parte daqueles que deveriam utilizar
a misericórdia e não fechar as portas de tão esplendoroso e eficaz sacrifício, expressão
tão significativa de nossa fé, de nosso amor e devoção que luziu ao longo dois
mil anos.
O ódio do heresiarca Lutero
se manifestava contra a liturgia da Missa, que ele qualificava de medieval, e também
contra o papado. A Missa é o centro litúrgico da vida cristã, e o papado é o
receptáculo da autoridade do próprio Jesus Cristo. Lutero não foi reformador
nem fez bem algum; quis demolir, com ódio satânico, o edifício sagrado
instituído por Nosso Senhor.
S. Pio V retratado em uma das páginas iniciais de um missal |
Há um princípio a ser
respeitado e conservado, estabelecido em 1570 por São Pio V no decreto Quo Primum Tempore, que cita textos confrontados
com os da Biblioteca Vaticana e com escritos de autores consagrados. Trata-se
do princípio lex orandi lex credendi –– a Igreja expressa em sua oração a sua profissão de fé.
Por sua vez, na carta
apostólica Summorum Pontificum, de 7
de julho de 2007, Bento XVI recorda que “cada
igreja particular deve concordar com a igreja universal não só quanto à fé e
aos sinais sacramentais, mas também quanto aos usos recebidos universalmente da
ininterrupta tradição apostólica, os quais devem ser observados tanto para
evitar os erros quanto para transmitir a integridade da fé, de sorte que a lei
da oração da Igreja corresponda à lei da fé”.
Atendendo ao desejo de
muitos fiéis e sacerdotes que queiram usar o Missal anterior ao Concílio
Vaticano II, Bento XVI lembra o cuidado que tiveram os romanos pontífices, em
particular de São Gregório Magno e São Pio V. E estabelece que esse Missal,
enaltecedor da riqueza e da beleza litúrgica, um tesouro transmitido pela
tradição apostólica, deve ser compreendido e acatado com paternal solicitude.
Acrescenta ainda que tal
desejo não pode ser impedido de forma alguma, mas acolhido com bondade e
compreensão, como estabelece João Paulo II no Motu Proprio Ecclesia Dei, de 1978, exortando os bispos a “que fossem generosos ao conceder a dita faculdade em favor de todos os
fiéis que a pedissem”.
A respeito do antigo Missal,
Bento XVI recomenda seguir a edição editada por João XXIII (instrução da
Pontifícia Comissão Ecclesia Dei), que reafirma, referindo-se ao antigo Missal,
que não há ruptura, exaltando que “aquilo
que para as gerações anteriores era sagrado, permanece sagrado”.
Ao obedecer a essas regras,
o rito latino leva os fiéis à unidade divina, a Deus como Ser supremo, absoluto
em três Pessoas, a Quem é prestado um culto com sacrifício propiciatório, que
se imola sob as espécies do pão e do vinho na consagração. São Pio V, o grande
Papa do Concílio de Trento, afirma a continuidade das formas no rito romano,
obedecendo ao conceito tomista da unidade, em atenção à tradição apostólica,
preservando a oração e a fé.
São Pio V |
Não é factível a fragmentação
dos princípios de ordem natural e filosófica para defender a própria verdade
com base na tradição. Como Esposa de Cristo e Mestra da verdade, a Igreja é
coerente consigo mesma, não podendo ser e deixar de ser ao mesmo tempo, em
contradição com o princípio metafísico e ontológico. A Missa dita tridentina
vem enriquecer e expandir a beleza com que Deus ornou a Santa Igreja. Sua
roupagem, revestida de sacralidade, esplendor e ordem, tem como fundamento a
Beleza Suprema.
Ao longo da História, o Espírito
Santo guiou a sua Igreja concedendo meios de conduzir as almas a Deus, dando
continuidade ao que vinha da própria Criação, segundo o princípio da finalidade
suprema do homem de conhecer, amar e servir a Deus. O centro da vida do homem e
o pulsar constante de sua alma estão no encantamento e no amor a esse mesmo
Deus, que expressa de modo digno, elevado e nobre o fim supremo para o qual a
liturgia conduz o homem.
Compreende-se, então, o ódio
à liturgia de São Pio V, que nada inovou, mas apenas conservou e consolidou,
sem fragmentar nem romper a tradição apostólica do sagrado, dando unidade
litúrgica, respeitando os ritos de pelo menos 200 anos de existência. É um
verdadeiro tesouro, que deve ser amado com todas as veras de nossas almas.
Sacrifício de Abraão oferecendo seu filho Isaac |
Cabe ainda considerar que o Sacrifício
da nova lei não rompe com a antiga, mas a complementa e aperfeiçoa. O sacerdote
pede a Deus que aceite o seu sacrifício como aceitou o dos justos da antiga
Lei: Abel, Abraão e Melquisedec. Ele tem como sacerdote e vítima o próprio
Jesus Cristo, que oferece a Deus, Augusta Majestade, os dons e as dádivas, a
Hóstia pura, santa e imaculada, o Pão santo da vida eterna e o Cálice da
salvação perpétua, em perdão dos nossos pecados.
Tais eram as preocupações do
Sumo Pontífice em 1570, no tocante à perpetuação da tradição apostólica do
sagrado rito, sedimentado na Constituição Apostólica Quo Primum Tempore. Eis um aspecto da nossa fé que, bem
considerado, é digno da expansão de nosso maravilhamento, sem radicalismos em
relação ao culto tradicional apostólico, profundamente identificado com a
Igreja e com seu glorioso passado, não havendo ruptura com o que Ela sempre
ensinou na forma de crer e orar.
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