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segunda-feira, 21 de maio de 2018


“Estarei convosco todos os dias”

*Pe. David Francisquini

           
Jesus Cristo, que se imolou e se ofereceu a Deus Pai por nós no alto do Calvário, é o mesmo que diariamente se imola em nossos altares em oferenda a Deus por nossos pecados.  A fim de comemorar a presença real de Nosso Senhor na Eucaristia, a Igreja Católica instituiu a festa de Corpus Christi, celebrada sempre com beleza, suntuosidade e requinte. Em decorrência deste caráter sagrado, a procissão eucarística se reveste de elevação e nobreza.
            A Eucaristia — ao mesmo tempo sacramento e sacrifício, sinal distintivo e visível da graça — é o próprio Jesus Cristo que se dá em alimento enquanto se imola e se oferece a Deus Pai no sacrifício da nova Lei. A missa é o símbolo do que existe de mais alto, de mais sagrado, de mais perfeito, pois liga Deus aos homens, o Céu à Terra. Aquele mesmo Jesus que se encerrou no ventre materno de Maria se encerra nas nossas igrejas sob as espécies do pão e do vinho.
            Nos Evangelhos, Cristo se autodenomina maná que desceu do céu, cordeiro que foi imolado, “o pão que darei é minha carne”. Como os judeus se escandalizavam com tais palavras, Jesus foi além: “Se não comerdes a carne do filho do Homem, não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós. Aquele que come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e Eu o ressuscitarei no último dia. Porque a minha carne é verdadeiramente comida, o meu sangue verdadeiramente bebida”.
            Na consagração eucarística ficam apenas as aparências de pão e de vinho. Pode-se fazer uma comparação com o que se passa no interior de um ovo que se transforma em ave e, contudo, sua casca não muda, permanecendo a mesma. As substâncias de pão e vinho se transformam em corpo e sangue pelo mistério da transubstanciação que se opera na Consagração, permanecendo os acidentes do pão e do vinho. Daí a razão de Cristo estar presente todo inteiro, tanto na espécie de pão quanto na de vinho, mas o sacrifício está representado e retratado nas duas distintamente.

            Foi tal a alegria de Cristo ao instituir a Eucaristia na última Ceia, segundo relata São Lucas, que Ele mesmo desejou comer com os discípulos o cordeiro pascal antes de padecer. “Digo-vos, pois, que não mais o comereis até que isto se realize no reino de Deus”. O júbilo do Divino Mestre na instituição da Eucaristia é surpreendente e repleto de unção.
            Ele fica conosco nos altares dia e noite, nimbado pela luz de uma lamparina que Lhe faz companhia. Quem comunga a hóstia consagrada come a carne de Jesus Cristo. Assim o Filho de Deus encarnado fundamentou esta verdade: “O Pai que vive me enviou, eu vivo pelo Pai, assim também o que me comer viverá por mim. Este é o pão que desceu do Céu. Não como o maná que os vossos pais comeram e, contudo, morreram. Quem comer deste pão viverá eternamente”.
            O pão e o vinho consagrados são um dogma para os cristãos, pois o pão se transforma em carne e o vinho em sangue. Aquilo que contemplamos pela fé supera a natureza, como afirma Santo Tomás, pois as espécies diferentes são apenas sinais que ocultam coisas exímias, esplêndidas, uma realidade que é o cume do amor de Cristo para conosco, que não nos deixa órfãos, porque está sempre conosco nesse sacramento divino.
            Ao comungar, o justo e o perverso recebem vida e morte, pois ao consumir essa realidade transcendental e real, conseguem para si a eternidade feliz ou infeliz. Por isso São Paulo Apóstolo afirma que cada um deve examinar a si mesmo, ao receber a Eucaristia, pois quem comunga indignamente come ou bebe a sua própria condenação. E São Tomás continua dizendo que ao receber a Eucaristia, “morte do mau, vida do bom”, ele vê como a mesma comida produz efeitos contrários, isto é, vida e morte.
            Ao fiel e digno comungante são reservados maravilhosos efeitos, como o aumento da vida na alma — a graça santificante — e a eterna bem-aventurança; purifica como o fogo; enfraquece as más inclinações como a ira, a inveja, a avareza, a deslealdade, apaga os pecados veniais. Como o sol que sobrepõe a aurora, a Santa Comunhão esparge luz e calor, e promove as graças atuais. Também aos enfermos é de grande e indispensável benefício, dando-lhes conforto, soerguimento e até a cura dos males de corpo e de alma.
           
Tão misteriosa é esta ação sacramental que o sacerdote, ao pronunciar as palavras da consagração sobre o pão e o vinho, empresta o seu aparelho fonador a Cristo, pois fala em nome de Cristo — in persona Christi, ou seja, como se fosse o próprio Cristo que estivesse pronunciando aquelas palavras que operam a transubstanciação. É um verdadeiro mistério de nossa santa Fé.
            O que os olhos não veem, a fé nos declara como realidade, a presença real de Cristo, presente real e substancialmente em nossos altares. O Céu se liga à Terra como um sol que afasta as trevas da noite. Diz Santo Afonso: “Os gentios imaginaram tantos deuses, mas não engendraram nenhum tão amoroso como o nosso Deus, que está tão perto de nós e com tanto amor nos assiste”.
            “Não há outra nação tão grande que tenha os seus deuses tão perto dela, como o nosso Deus está presente a todos nós” (Det. 4, 7). A Santa Igreja aplica com razão esta passagem do Deuteronômio à festa do Santíssimo Sacramento". 
A eucaristia é um verdadeiro sol que ilumina a vida cristã. Não há nesta terra o que encante mais e anime tanto, nos cumule de esperança e de alegria que ter Cristo presente entre nós: ‘Eis que estarei convosco todos os dias, até à consumação dos séculos.

sábado, 12 de maio de 2018


Santa Missa: um sacrifício sem mácula

*Pe. David Francisquini

A Santa Missa é a incruenta renovação do sacrifício do Calvário, ou seja, da Paixão e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. Foi Ele próprio quem a instituiu na Última Ceia, para que seu holocausto na Cruz fosse renovado a cada dia em toda a face da Terra, até a consumação dos séculos.
No momento da Consagração, as espécies separadas do pão e de vinho nos conduzem ao mistério mais sublime da nossa santa Fé, ao se transformarem no Corpo e no Sangue de Jesus Cristo.

parte de trás da casula - (paramento litúrgico)
parte de trás da casula - (paramento litúrgico)
A separação dessas espécies indica a morte mística. Os grãos de trigo secados ao sol, debulhados, moídos, amassados e cozidos ao forno simbolizam um processo no qual a ideia de uma trituração se encontra subjacente. Quanto às uvas, elas são preparadas e espremidas no lagar para dar o vinho [na foto ao lado, trigo e uva estilizados no sacrário]. Este procedimento na preparação do pão e do vinho nos faz adentrar na dolorosa Paixão de Cristo.
No Calvário houve derramamento de sangue e no Altar o sacrifício é incruento, mas a Vítima é a mesma: Jesus Cristo, que se imolou por nós. Pode-se compreender então o ódio dos inimigos da Fé contra a grande realidade do Altar — o centro da vida cristã — anunciado pelo profeta Malaquias: “Entre todos os povos, e em todos os lugares da Terra, do nascer ao pôr-do-sol, oferecer-se-á, à glória de Deus, um sacrifício sem mácula”.
Com a vinda do nosso divino Salvador, constituiu-se um vínculo perene entre o Céu e a Terra, pois o sacerdócio da nova Lei — fundado por Jesus Cristo — passou a ter a missão superior e grandiosa de oferecer sacrifício pelos pecados do seu povo: “Tu és sacerdote eternamente segundo a ordem de Melquisedec”. Em toda a Terra, a qualquer hora do dia, é oferecido o sacrifício puro, sem mancha, santo e imaculado.
ornamentos da casula
Não poupou o Altar o processo revolucionário que se desencadeou contra a Cristandade medieval e cujo lúgubre curso, agora estertorante, vive seus últimos dias. Já a falsa Reforma luterana havia mudado a Missa por ser ela o centro de unidade da Igreja, juntamente com o Papa, sua cabeça visível. Tal reforma procurou extirpar tudo aquilo que dizia respeito ao sacrifício, à expiação, à impetração e imolação, ao afirmar que tudo não passava de mera lembrança.
Para a falsa Reforma, não há simplesmente distinção entre sacerdote e leigo, pois ela nega o caráter indelével que assinala e distingue o padre do simples fiel. Assim, todos poderiam oferecer a Missa, a qual não passaria de um ato de louvor, de uma ação de graças, de uma ceia celebrada com pão e vinho distribuídos de mão em mão a todos os presentes.
Em sua “missa” celebrada em língua alemã, Lutero conservou algumas orações sem valor intrínseco, porque desligadas do verdadeiro sacrifício instituído por Nosso Senhor Jesus Cristo. Portanto, o ato mais sublime de nossa Fé, como expressão do sacrifício latrêutico — ato de reconhecimento e adoração a Deus como Senhor dos senhores —, foi extirpado pela heresia protestante.
ornamentos da casula
Como a Santa Missa é o sacrifício da nova Lei, sua celebração deve revestir-se da mais alta expressão de nobreza, elevação, dignidade e inocência. Junto ao altar, o celebrante — que é o sacrificador e representante da Vítima adorável — se eleva acima de toda a comunidade católica qual novo Monte Calvário, em que a Missa se     transforma, atingindo seu cume no momento da Consagração, quando Cristo se imola.
No sacrifício da nova Lei, o sacerdote não pode ter esposa nem filhos, por ser um seguidor de Cristo, cuja Cruz ele traz em suas costas, impressas no paramento [foto abaixo]. Este também tem um significado, por revestir alguém que vai operar algo de grandioso no altar onde Cristo se oferece pelos nossos pecados.
Ao se oferecer em holocausto por toda a humanidade, Jesus Cristo instituiu um sacrifício para os seguidores de sua Igreja, a única e verdadeira. Os fiéis que assistem a Missa unindo-se às intenções do sacerdote beneficiam-se dela, pois Cristo morreu para nos dar os meios de salvação. Se pelo batismo somos incorporados à Igreja como seus membros vivos, sê-lo-emos a Cristo no Altar por seu sacrifício, seus dons e oferendas, podendo inclusive, sempre que estivermos em condições, nos unir intimamente a Ele na sagrada Comunhão.
O mesmo ódio que rondou em torno do Calvário ronda hoje, em aras da igualdade, em torno do altar. Ele visa suprimir o verdadeiro sacrifício da Missa com mutilações e supressões para descaracterizá-lo e torná-lo mais ‘humanista’, mera ceia desprovida do caráter sagrado. Como o Cânon era recitado em silêncio, ninguém percebeu a modificação que ele sofreu, por parte de Lutero, suprimindo a ideia de união do sacrifício com a Santa Igreja.
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O requinte e a beleza do cerimonial de uma época têm íntima ligação com a mentalidade e os costumes dessa época, com sua maneira de pensar, sentir e julgar. Se, numa manifestação de orgulho e sensualidade, lhe forem subtraídos esses predicados, ela decai, por exemplo, no modo de trajar de seus contemporâneos, que se torna vulgar.
Creio que isso explica de algum modo o avanço galopante do ateísmo, da laicização e das ideias revolucionárias que vêm destruindo todos os valores morais e espirituais da sociedade, como a perda do fervor religioso, da noção de moral e, portanto, do pecado. O resultado desastroso não poderia ser senão o esvaziamento dos ambientes católicos.

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(*) Sacerdote da Igreja do Imaculado Coração de Maria – Cardoso Moreira (RJ).

domingo, 8 de abril de 2018


Meu Senhor e meu Deus!


Pe. David Francisquini*

Pode parecer surpreendente, mas a Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo não foi disposta para ser presenciada pelo povo em geral, mas apenas por algumas testemunhas previamente escolhidas, como os apóstolos e os discípulos.
Ao contrário da Paixão de Cristo, que, como afirma Santo Tomás de Aquino, foi manifestada a todo o povo e transcorreu numa natureza passível, mortal, conhecida de todos pela lei comum, como ele descreve em sua Suma Teológica.
Como a Ressurreição se operou para glória do Pai, não convinha por isso que fosse revelada a todos, mas somente àqueles que tinham a missão de difundir a Boa Nova por toda a Terra.
Não há prova tão convincente da divindade de Jesus Cristo quanto à sua Ressurreição gloriosa três dias depois de ter padecido e morrido na Cruz. A verdade da Ressurreição — sem a qual, segundo São Paulo, nossa fé seria vã — transparece nas páginas dos Evangelhos que narram o aparecimento de Jesus Cristo a seus discípulos, falando, comendo e bebendo com eles, além de oferecer seu divino Corpo para ser tocado, bem como mostrando o sinal dos cravos.
Os discípulos ficaram reluzentes de alegria e júbilo incontido. Não lhes restavam dúvidas de que Cristo ressurgira dos mortos. Mais ainda. Pode-se dizer que a Ressurreição foi gloriosa, pois Cristo não quis conviver com os seus fiéis discípulos como outrora, mas aparecendo-lhes de quando em quando, para não dar a entender que seu corpo era mortal, mas um corpo imortal.
Nisso, a verdade da Ressurreição apresenta um esplendor que nos confirma na fé e na esperança de podermos contemplar Jesus Cristo um dia no Céu. Na verdade, ao ressuscitar impassível, glorioso e com frequentes aparições, Ele quis certificar os seus discípulos dessa verdade sublime.
Cristo teve o cuidado minucioso de não induzi-los ao erro, acreditando que vivia como antes. Para isso aparecia-lhes de quando em quando, de maneira surpreendente e inusitada, pondo-se de repente entre eles estando fechadas as portas, ou então desaparecendo igualmente a seus olhos.
A psicologia do Salvador e a sua divina capacidade de ensinar tornaram sua didática muitíssimo superior à nossa, respeitando, contudo, o processo humano de aprendizado. Com efeito, Cristo procura ensinar seus fiéis discípulos a se guiarem pela fé, pela razão, pelo raciocínio, pela lógica, pela disciplina e pela coerência, constituindo uma verdadeira escola de formação.
Ele quis gravar em seus corações a verdade de que é verdadeiro Deus e Salvador do mundo. Não estabeleceu a escola das aparências, dos sentimentos, do ver para crer. Quis e quer assentar os alicerces da verdadeira doutrina, o luzeiro que enxota as trevas do paganismo.
Uma palavra surpreendente repreendeu Tomé, que havia dito que só acreditaria se tocasse a mão no lado e o dedo nas chagas do Mestre, ensinando com isso a todos os seus irmãos na fé. De fato, Jesus surge entre eles e manda Tomé tocar seu divino lado e suas chagas gloriosas. Tomé as toca e, em seguida, faz a sua profissão de fé exclamando: “Meu Senhor e meu Deus!”.
Jesus, por sua vez diz: “Tu, Tomé, creste porque viste. Bem-aventurados aqueles que não viram e creram”. Nosso Senhor ressalta a fé ao destacar a doutrina por meio do tato, o último dos sentidos do homem… Afinal, Tomé não havia acreditado em seus companheiros que lhe haviam dado a boa-nova da ressurreição de Cristo.
Somente no domingo, no mesmo dia da Ressurreição, Cristo apareceu cinco vezes, como narram os Santos Evangelhos: primeiramente, às santas mulheres no Santo Sepulcro; depois, ainda a elas, quando voltavam do Sepulcro; outra vez a Pedro; uma quarta vez aos discípulos de Emaús, e, por fim, a vários discípulos reunidos no Cenáculo, sendo que Tomé não se encontrava entre eles.
Antes de sua gloriosa Ascensão ao Céu, Nosso Senhor apareceu várias vezes a seus discípulos, inclusive a Tomé [pintura ao lado], que estava com eles, no Mar de Tiberíades e no monte da Galileia, para lhes indicar que Aquele mesmo Cristo que fora crucificado e tratado duramente pelo ódio lhes aparecera.
A escola de formação fundada por Jesus Cristo ficou gravada profunda e perenemente nas almas de seus discípulos, dando-lhes a esperança da vitória de Cristo na Terra, conquistando-a para o reino de Deus. Não há um lugar nesse Vale de Lágrimas onde não se tenha noção de que a Igreja Católica é a Igreja fundada por Jesus Cristo, a Arca da Aliança e Porta do Céu, que convida a todos a tomarem parte d’Ela.
Tal escola nunca foi, não é, jamais será a desse ecumenismo pós-conciliar banal, que confirma as pessoas no erro. Ao ressuscitar, Nosso Senhor disse a seus discípulos: “Ide por toda parte e pregai o Evangelho; quem crer e for batizado, será salvo, e quem não crer será condenado”. Portanto, a Ressurreição de Cristo vem manifestar a divindade e a indefectibilidade da Santa Igreja, fora da qual não há salvação.
No ato de fidelidade dos Apóstolos e dos discípulos do Senhor se assentam os fundamentos da Civilização Cristã na Terra. O esplendor e a grandeza dessa civilização, hoje quase em ruínas, conheceram o seu auge de glória na Idade Média. Outra civilização — mais esplendorosa, mais majestosa, mais hierárquica —, dar-se-á contudo com o Reino de Maria, profetizado em Fátima: “Por fim o meu Imaculado Coração triunfará.”

sábado, 24 de março de 2018

A coragem de dizer NÃO

*Pe. David Francisquini

Pilatos, o governador romano que cometeu o crime mais monstruoso de toda a História, não foi movido a praticá-lo por qualquer ódio ideológico; tampouco visava à conquista de novas riquezas, nem a comprazer a alguma Salomé. Neste particular difere de Herodes, que para salvaguardar seu trono, seu bem-estar e suas riquezas, perpetrou covardemente a matança dos Santos Inocentes.
Aliás, os grandes tiranos da História — Lenine, Stalin, Hitler, entre outros — por ambição ideológica e ódio a Deus, à Igreja e à Fé, inundaram a Terra com o sangue de mártires.
Pilatos, mesmo afirmando que não encontrou crime algum em Nosso Senhor Jesus Cristo, entretanto O condenou. O que o teria movido?
Plinio Corrêa de Oliveira considera numa de suas meditações sobre a Via Sacra que Pilatos foi levado a condenar o Justo pelo receio de desagradar a César Augusto. Portanto, não queria complicação política que pudesse indispor o povo judeu contra o jugo romano. Pilatos foi mole, indolente, numa palavra, cúmplice daquela pérfida orquestração contra a vida de Nosso Senhor.
Ao querer contemporizar com a mentalidade que grassava no povo judeu, pareceu-lhe que condenando Nosso Senhor à flagelação e à coroação de espinhos, contentaria com isso os judeus, livrando-O da sentença de morte.
Utilizou-se da política característica dos covardes, isto é, de “ceder para não perder”, sempre condenada ao fracasso mais rotundo. Depois de flagelado e “coroado”, Pilatos apresentou Jesus à populaça açulada, mas ela não se contentou e exigiu do governador a morte do Justo.
Grande lição. Quanto mais se cede, mais o inimigo prevalece. Em muitas ocasiões, é preciso saber dizer um “não” categórico, pois não se pode fazer concessões, nem mesmo contemporizar com o mal, pois entre a verdade e o erro, entre o bem e o mal há um ódio irreconciliável. Não há paz entre os que são de Deus e os que são da serpente, entre a raça da Virgem e a do demônio.
Pilatos não quis seguir a via da verdade, da inocência, as regras de um julgamento reto e justo, mas quis ajustar a verdade ao erro, a justiça à mentira e à iniquidade. Com o gesto infame de “lavar as mãos”, quis isentar-se da culpa pelo sangue inocente que seria derramado. E para estar bem com todos, entregou Nosso Senhor ao populacho para ser crucificado.
Partindo de um governador romano que na condição de juiz reprovasse o Inocente, caberia apenas uma condenação: a morte de cruz, pois não podia haver um crime mais ignominioso e que causasse maiores sofrimentos do que esse.
Santo Tomás afirma que o Homem-Deus quis morrer ostensivamente pregado na cruz, pois entre todos os gêneros de morte, nenhum era mais execrável. Ele o fez para ostentar como o pecado é ignominioso.
Esse gênero de morte foi conveniente por excelência para a satisfação dos pecados de nossos primeiros pais, por terem comido do fruto da árvore contra a vontade de Deus. Convinha que, para satisfazer esse pecado e obedecer à vontade do Padre Eterno, Cristo consentisse em ser pregado no madeiro para recuperar o que Adão perdeu por desobediência.
A sua divina presença santificou a Terra. Andou sobre ela para difundir o Evangelho e operar estupendos milagres, purificando-a com o preciosíssimo sangue vertido. Ao ser elevado na Cruz, santificou o ar que envolvia a Terra e, assim, atraiu a Si todas as coisas.
A figura da cruz, diz Santo Tomás, ao se expandir de um centro único em quatro extremos opostos, significa o poder e a providência de Nosso Senhor esparsos por toda parte, que dela pendente com uma mão atrai o povo fiel e com a outra o povo pagão.
Ao ser condenado à morte injusta na cruz, Jesus Cristo tinha escolhido esse gênero de morte para que fosse o Mestre de todas as dimensões — da largura, da altura, do comprimento e da profundidade —, como símbolo das boas obras, da estabilidade e da perseverança, da esperança perfeita e da graça gratuita.
Como Mestre da Verdade, prega em sua Cátedra, ou seja, a Cruz: “Quem quiser vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”.

sábado, 3 de março de 2018


Bondade não significa fazer concessões

Pe. David Francisquini

A santidade infinita de Deus odeia o pecado e o persegue, pois este contraria as perfeições divinas. Em contrapartida, a sua insondável bondade ama o pecador e, por sua misericórdia, procura atraí-lo, utilizando-se de todas as gentilezas para extirpar do coração de seus filhos a maldade absoluta, para que vivam e se convertam de seus pecados.
Para isso o Filho de Deus se encarnou, tornou-se homem e “humilhou-se a Si mesmo, fazendo-se obediente até a morte, e morte de cruz. Por isso também Deus O exaltou, e Lhe deu um nome que está acima de todo o nome; para que, ao nome de Jesus, se dobre todo o joelho no Céu, na Terra e no Inferno”, afirma São Paulo Apóstolo.
Com efeito, os sofrimentos pelos quais Nosso Senhor Jesus Cristo passou durante a Paixão são inexprimíveis e culminaram com a morte ignominiosa pelos nossos pecados. Ele, que já havia nos deixado os sacramentos e o Seu próprio corpo místico consubstanciado na Igreja como fonte de salvação.
Cabe-nos repetir com a tradição que Jesus Cristo deu os meios para um fim que é remédio para a nossa natureza corrompida, e não para que abusemos deles continuando na vida de pecado.
Jesus expulsa os vendedores do templo
Se Deus usa de misericórdia em relação ao pecador é para arrancá-lo do pecado, não sendo outro o objeto da súplica do Senhor da paciência, da calma e do silêncio enquanto pecamos, escreve o Pe. Tissot.
Deus age assim não para que a pessoa permaneça no pecado, mas para que o extermine completamente, porque, uma vez extirpado, o pecador abandona o mau caminho com bons propósitos de arrependimento e de emenda de vida. Ao mesmo tempo, Cristo sai triunfador, por ter-se aniquilado a Si mesmo e assim exterminado a iniquidade do pecado que se opõe ao fim do homem.
Bondade não significa fazer concessões, estimular a prática dos vícios, usufruir de sua liberdade para permanecer nas desordens morais do pecado. Nada disso. Representa o objeto da bondade e da misericórdia divinas.
Para tomarmos um exemplo gritante em nossos dias, bondade é o contrário do que vimos assistindo em relação à comunhão de recasados e de divorciados, ou ainda das segundas núpcias, ao se lhes permitir aproximar da mesa de comunhão. Isso não passa de protuberante abuso da misericórdia divina.
É lamentável constatar a sede e o afã de novidades de uma ala ponderável do clero, disposta a afrontar os ensinamentos multisseculares do Magistério da Igreja em nome da Misericórdia.
Ao se abrirem as portas dos sacramentos aos que vivem publicamente em estado de pecado sob a alegação de que Deus é bom e não condena ninguém, de que não somos juízes e que por isso não podemos julgar, e que cada qual siga a sua consciência, fica estabelecido o relativismo moral e religioso.
Santo Afonso Maria de Ligório
Digo-o com base e fundamento em Santo Afonso Maria de Ligório, que ensina:
“Não merece a misericórdia de Deus aquele que se serve da mesma para ofendê-Lo. A misericórdia é para quem teme a Deus e não para o que dela se serve com o propósito de não temê-Lo. Aquele que ofende a Justiça pode recorrer à Misericórdia; mas a quem pode recorrer o que ofende a própria Misericórdia?”.
Quem ofende a Deus confiante de ser perdoado porque Deus é bom e misericordioso tem uma malícia própria em escarnecer de Deus, em zombar de Deus para continuar a pecar e a usar dos sacramentos sem preencher as condições para recebê-los.
Receber os sacramentos sem estar em estado de graça é profanar o próprio sacramento. Quem recebe a sagrada comunhão em pecado mortal comete um sacrilégio, pois é preciso ter coração puro, recolhimento, espírito de fé, sem apego algum ao pecado.
Quem assim não procede imita o sacrilégio de Judas, que imediatamente após ter recebido a sagrada comunhão em estado de pecado, saiu do cenáculo impelido pelo demônio, como afirma São João Crisóstomo:
“Quem, utilizando-se de pretexto da misericórdia, vive em estado de pecado mortal sem deixá-lo, comete horrível sacrilégio, fica afastado do caminho do Céu que é o caminho reto, caminho de luz e de verdade, e não de trevas.
“Se tu, fiado na divina misericórdia, não temes fazer mal-uso dela em tempo oportuno, o Senhor vai retirá-la de ti, porque a Deus pertence a vingança. Chegada a hora da justiça, Deus não espera mais, cai sobre o pecador emperdenido como um raio justiceiro.”
A respeito do magnífico pensamento sobre a impunidade em que Deus deixa o pecador, assim expressa Santo Afonso: “Deus o deixará sem castigo nesta vida, e nisto consistirá o seu maior castigo. Compadeçamos do ímpio […] não aprenderá justiça” (Is 26, 10).
Referindo-se a esse texto, diz São Bernardo: “Não quero essa misericórdia, mais terrível que a ira. Terrível castigo, quando Deus deixa o pecador em seus pecados e parece que nem lhe pede contas deles” (Sl 10, 4).
Inferno
Desgraçados os pecadores que prosperam na vida mortal! É sinal de que Deus reserva para lhes aplicar sua justiça na vida eterna! Jeremias pergunta: “Por que o caminho dos ímpios passa em prosperidade?” (Jer. 12, 1).
E responde em seguida: “Reúne-os como ao rebanho destinado ao matadouro (Jer 12, 3). Não há, pois, maior castigo do que deixar Deus ao pecador amontoar pecados sobre pecados, segundo o que diz David: pondo maldade sobre maldade […]. Riscados sejam do livro da vida” (Sl 28, 28-29).
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