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sábado, 25 de fevereiro de 2017

Retorno à casa paterna

Pe. David Francisquini


Enquanto o ano de 2017 não começa de verdade, o Brasil assiste a uma onda de criminalidade que lembra cenas de filmes de terror, tamanha a crueldade e a selvageria cometidas nas ruas, nos presídios, e até mesmo no recinto familiar.
Neste último, onde outrora reinava a tranquilidade, a segurança e o bem-estar, com o desfazimento da família vêm se produzindo desequilíbrios alarmantes, cujo exemplo recente mais chocante foi a chacina ocorrida no final de 2016 em Campinas, que ceifou a vida de várias pessoas de uma família, inclusive da esposa e do filho do autor, que depois pôs fim à sua.
Se medidas drásticas não forem tomadas, e, sobretudo, se Deus não intervier contra esta brutal investida, impossível não vislumbrar o caos social.
Entre tais medidas estaria, de um lado, fazer cessar por vias legais todos os programas televisivos atentatórios à família e cujo desfecho final próximo ou remoto é o crime em suas diversas modalidades, e de outro, impedir a legalização das drogas, defendida até por um ex-presidente octogenário que nega a realidade em aras ao marxismo que professa: a Holanda, que as legalizou, está voltando atrás, tais foram os estragos irreparáveis causados pela legalização.
Poderá se perguntar, no tocante à mídia – televisiva, falada ou escrita – a liberdade de imprensa. Esta, entretanto, para ser verdadeira e legítima, não pode jamais prejudicar o bem comum, cuja defesa incumbe ao Estado. A propósito da liberdade ilimitada, exercida por uns poucos em detrimento do conjunto do País, convém repetir o que a propósito da Revolução Francesa exclamou Madame Roland: “Liberdade, liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome!”.
             Foi devido a essa liberdade irrestrita e mal compreendida, cujo porta-voz incessante é a política dos Direitos Humanos, que gangues de presidiários do crime organizado vêm disseminando o terror em disputa pelo poder dentro e fora das prisões; que policiais fazem greves, enquanto outros são agredidos e mortos nas ruas; que se tornou possível a grande desordem ocorrida em Vitória–ES, com pilhagens, roubos, execuções e conflitos sangrentos que metem pânico na população ordeira, pacífica e desarmada.
Com efeito, como estamos longe da paz verdadeira, definida por Santo Agostinho como a tranquilidade da ordem! Entendida como a paz de Cristo no Reino de Cristo, essa ordem não está para ser inventada, porquanto ela existiu e está registrada na História, quando a sociedade destilou e colocou em prática os princípios do Evangelho formando a civilização cristã no período medieval.
Finda a Cristandade, num declinar ininterrupto, esta mesma civilização foi sendo carcomida pelos seus inimigos. Começando pelo tão propalado Renascimento, que substituiu a sociedade teocêntrica pela antropocêntrica, passando pela Revolução Protestante, quando foram lançados o espírito de dúvida e o liberalismo religioso, desfechou mais tarde no assim chamado Século das Luzes, ao mobilizar a razão para combater a verdadeira fé, depois na Revolução Francesa com a sua doutrina igualitária e laicista, até chegar ao comunismo.
Como esse processo não deve ser visto como uma sequência fortuita de causas e efeitos, que se foram sucedendo de modo inesperado, pois já em seu início continha as energias necessárias para reduzir a atos todas as suas potencialidades, como afirma Plinio Corrêa de Oliveira em seu livro Revolução e Contra-Revolução, ele continua fazendo o seu caminho rumo ao abismo.
Com efeito, uma vez desencadeadas as más paixões, o homem passa a ter sede de absurdo e de pecado, e assim, de abismo em abismo, ele segue inexoravelmente a rota da bola de neve ou da pedra que rola do cimo de uma montanha até o vale mais profundo, incapaz de se lembrar da casa paterna onde imperavam a harmonia e a paz. Afinal, são poucos os que hoje se lembram da civilização cristã.
Por que não procurar reviver aquilo que fazia o homem feliz neste vale de lágrimas? Bons tempos foram aqueles proclamados pelo Papa Leão XIII: “Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava as nações”. Havia harmonia entre as classes sociais, pois todos obedeciam à Lei de Deus, conditio sine qua non para reinar a verdadeira paz que é a tranquilidade da ordem.
Fala-se tanto de paz... Aí está a ONU, supostamente a guardiã da paz mundial, mas do que valem seus esforços? De nada. Absolutamente nada. Há, a respeito dela, até um conceito com ares de verossimilhança, que se enuncia mais ou menos assim: “ONU = organismo com o qual ou sem o qual o mundo continua tal e qual”. Afinal, os seus meios são alheios, quando não diametralmente opostos à Lei de Deus e à sua divina sabedoria.
Portanto, este grande desejo de paz vem-se demonstrando inalcançável como a linha do horizonte, sempre equidistante e nunca atingida pela embarcação em alto mar. Bem considerada a questão, isto não constitui surpresa, visto que a busca de solução tem sido feita por meios tortuosos, quando não cúmplices. As discussões costumam girar em torno das desigualdades, da pobreza, do desemprego, da educação, da saúde.
Mas faz-se, propositadamente, tábula rasa a respeito daquilo que importa realmente, as questões morais, como se estas não embasassem fortemente os conceitos e a licitude estabelecida nas leis. Não esqueçamos que a Santa Igreja é a guardiã da moral, consubstanciada nos dez mandamentos da Lei de Deus.
*   *   *
Podemos facilmente constatar que numa família de prole numerosa, mas carente de recursos, via de regra os filhos atingem a maioridade vencendo as dificuldades da vida com honra e dignidade, para a alegria dos pais e edificação da sociedade em que vivem e servem, constituindo exceção a ocorrência de um deles se tornar infrator ou criminoso contumaz.
Ora, a imensa maioria dos brasileiros mostra-se estarrecida com os feitos monstruosos perpetrados pelas chacinas ocorridas nos presídios e condolente em relação às crianças trucidadas no ventre materno nas clínicas de aborto e aos idosos que possam vir a ser objeto da eutanásia. Pois nesses casos há sempre a violação da lei natural.
Cabe ainda salientar que, à força de ir sabendo pelo noticiário de tantos e tais acontecimentos, estes vão se tornando banais, o que mais facilmente induz as pessoas à barbárie. O que se depreende da narrativa do noticiário sobre as tragédias é que a opinião pública acaba por se habituar às notícias, não reagindo nem tomando posição diante dos fatos baseada em princípios. Com tal estado de espírito, o martelar das notícias torna as pessoas insensíveis.
A noção de bem e de mal, conatural às pessoas, vai se evanescendo. Encontramo-nos à mercê de um mundo dominado pela insensibilidade, pelo egoísmo, pela indiferença, pela ausência crescente de Deus nos corações. O verdadeiro conceito de família como instituição divina vai assim desaparecendo de nossas mentalidades e considerações e, com ele o bem-estar, o equilíbrio e a harmonia.
Resta-nos buscar na oração as forças necessárias para enfrentar esta luta com certeza e esperança de melhores dias. A doutrina de Jesus Cristo é uma luz que nos guia até a vitória profetizada em Fátima, há um século, pelo triunfo do Imaculado Coração de Maria. A Mãe de Deus, embaixadora celeste, disse em 1917 que a Rússia espalharia seus erros pelo mundo. Pediu oração, penitência, mudança de vida e a devoção dos cinco primeiros sábados. 

quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Por que tanta vontade de trucidar criancinhas?
                                                                       Padre David Francisquini
Às vésperas do Natal, a partir do caso específico de suspensão da prisão preventiva de pessoas que trabalhavam numa clínica clandestina de aborto no Rio de Janeiro, o Supremo Tribunal Federal acabou por liberar a sua prática até os três meses de gestação, fato que vem provocando acirrada polêmica no país.
            Abortar constitui crime não apenas para um católico, mas para todos os homens, em todos os tempos e lugares, como decorrência da lei natural, pois ninguém tem o direito de praticá-lo simplesmente pelo fato de formar opinião individual de que o mesmo não importa em crime.
Com efeito, os princípios da lei natural inscritos nos corações de todos os homens são acessíveis à razão e se impõem a todos, independentemente de suas crenças – ou descrenças – religiosas, mesmo que eles ocupem situação de preeminência na vida social, política ou mesmo no Judiciário.
Vimos verificando que o Estado brasileiro, apesar de se dizer laico ou neutro, acaba por impor sua ideologia pela introdução de leis ao gosto de minorias que postulam uma vida social e pública desvinculada de qualquer fator religioso, contrariando, aliás, o direito natural e divino.
Trata-se de um confessionalismo ideológico agnóstico e laico, de um estranho estado de direito democrático e pluralista, no qual, na prática, apenas os ditos incrédulos modelam e impõem as leis a seu talante. Nesse sentido, foi significativa a decisão da nossa Suprema Corte sobre o aborto, na calada da noite.
No exato momento em que, desdenhando as cinzas do sanguinário ditador Fidel Castro, cultuadas em Cuba por dois ex-presidentes petistas, o Brasil enlutado pranteava a tragédia ocorrida com o time da Chapecoense, algo de muito mais trágico acontecia entre as quatro paredes do STF: a descriminalização do aborto até o terceiro mês de gestação, condenando, ipso facto, milhões de brasileiros indefesos à morte atroz.
 Quando os egrégios ministros do STF deveriam estar voltados contra a corrupção que se alastrou em todos os campos da sociedade brasileira, sobretudo no meio político, sua preocupação era paradoxalmente de autorizar o crime contra os inocentes.
Apenas para recordar, o caso ocorrido na clínica clandestina carioca foi parar no STF, onde o Ministro Marco Aurélio Melo votou pela liberdade dos funcionários por entender que não cabia prisão preventiva. Contudo, o Ministro Luís Roberto Barroso apresentou um voto ampliado, descriminalizando, na prática, o aborto.
          Recordemos ainda que, antes de se tornar Ministro do STF, o Dr. Luís Roberto Barroso, quando ainda advogava, impetrou ação que passou a vigorar contra os anencefálicos, pondo assim a guilhotina para funcionar contra as crianças portadoras de deficiências, alegando tratar-se de duro fardo para as mães de filhos especiais.
         É a primeira vez na História do Brasil que o aborto amplo e irrestrito passa a vigorar juntamente com o aborto decorrente de estupros. Elevado à condição de ministro do STF, o Dr. Barroso, do alto de seu “notável saber jurídico e reputação ilibada”, passou a trabalhar à revelia das disposições constitucionais, que garantem a inviolabilidade do direito à vida, ao favorecer a causa do aborto.
Os seus argumentos são lastreados nos jargões mais surrados dos defensores do aborto um pouco por todo o mundo, ou seja, que sua criminalização é incompatível com os direitos fundamentais da mulher, entre eles os sexuais e reprodutivos, bem como de sua autonomia e integridade física e psíquica, além dos da igualdade.
Ao alegar os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, com frequência se menciona, como uma palavra de ordem, seu suposto direito ao aborto. Isso tem como base o pressuposto hedonista, segundo o qual a vida sexual seria destinada ao prazer das partes, e não relacionada com a vida em família e a procriação da prole.
O Sr. Ministro, ao alegar ainda que só a mulher engravida, acaba por minimizar o direito fundamental de todo ser humano, direito inalienável decorrente de sua própria constituição enquanto ser racional e volitivo, ontológico e com direito à vida. Isso faz parte da própria sanidade mental e moral do indivíduo.
Do ato entre um homem e uma mulher é gerado um novo ser, que deve ser respeitado e garantido pela própria Constituição e pelo Supremo Tribunal, e não simplesmente eliminado. Todos os tratadistas de filosofia aristotélico-tomista defendem o direito à vida como direito fundamental do próprio ser racional.
Por exemplo, como se explica tanto alarde contra quem ‘assassina’ uma capivara ou uma sucuri, crime qualificado como inafiançável, enquanto libera de toda responsabilidade quem pratica um aborto em nome do ‘direito’ da mulher de decidir sobre a manutenção de sua gravidez, porque somente ela pode conceber?
Por que tanta vontade de trucidar criancinhas?  Será que, data venia, o Sr. Ministro está a serviço de minorias ideologizadas, que recorrem à Justiça para mudar leis e costumes nos moldes da ativista colombiana Mónica Roia, visando um impacto sentimental para mover a opinião pública?
Parece ter sido este o ponto de convergência entre os ministros, que a Suprema Corte acolheu. Nada disso é novo, pois esta cantilena foi denunciada há muito no meu livro Catecismo contra o aborto (Capítulo VII – Aborto, Saúde Pública e Estado Leigo – p. 37, Artpress, 2009).
Que os parlamentares abram os olhos para o delineamento de um ativismo ditatorial do Judiciário em prol do aborto, se não quiserem perder a prerrogativa de legisladores. Na realidade, estamos assistindo à maior debilitação do vínculo familiar, com a consequente destruição da família conforme Jesus Cristo a instituiu.
Cumpre, portanto, fazer valer o direito da Santa Igreja de ser ouvida. Direito que não está vinculado a maioria alguma, mas à suma autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, que também foi Mestre, independentemente de as multidões O aclamarem.

sábado, 24 de dezembro de 2016

Natal e as saudades da inocência

Pe. David Francisquini

Na noite do Santo Natal a alma cristã fica como que envolta numa luz especial, pálido reflexo da Luz incriada que Se tornou homem e passou a habitar entre nós. Aquele que é Todo-Poderoso se faz pequenino, frágil, débil, uma criança que cativa os corações por sua inocência, doçura e afabilidade.
Na sua infinita sabedoria, nosso Redentor quis proceder assim para ter ‘certa’ proporção conosco. Daí a natureza encantadora das noites em que celebramos o seu nascimento. A representação singela da gruta armada dentro de uma igreja ou de um lar atrai a atenção de todos pelo seu ambiente acolhedor, por sua atmosfera deliciosa de ser sentida, própria a um Deus que se fez criança para nos elevar à dignidade de filhos d’Ele.
As melodias natalinas se assemelham a reverberações celestes que pervadem nossas almas com doçura e amenidade angélicas. É o Céu que habita a Terra e nos nobilita, na medida em que nos deixamos enlevar pelos seus encantos. De onde o Natal ser a verdadeira festa do Menino Jesus. Quem, por exemplo, não se encanta ao ouvir a canção Noite Feliz? Quem não se extasia ao ouvir as notas harmoniosas do Gloria in Excelsis Deo, entoada pelos anjos nos campos de Belém, aos pastores ignotos naqueles campos, pastoreando as suas ovelhas?
Nesses momentos, quem não sente saudades de sua infância inocente? Daquela infância evocada por Cassimiro de Abreu em seus versos, com cuja lembrança nós retroagimos no tempo e nos sentimos crianças; que nos faz deixar por alguns momentos de ser nocentes, isto é, nocivos, prejudiciais, daninhos, para tornarmo-nos inocentes.  
O Natal de Jesus Cristo veio trazer o fogo à Terra para incendiar os nossos corações. Assim exclama Santo Afonso de Ligório:  "Vim trazer o fogo à Terra, disse Jesus Cristo, e o trouxe de fato. Antes da vinda do Messias, quem amava Deus sobre a terra? Ele era apenas conhecido em uma pequena região do mundo, isto é, na Judeia; e mesmo lá, quão poucos eram os que O amavam no tempo de Sua vinda!
 Segundo o mesmo bispo e doutor da Igreja, “no resto da terra, uns adoravam o sol, outros, os animais, outros ainda as pedras ou criaturas ainda mais vis. Mas, depois da vinda de Jesus Cristo o nome de Deus se difundiu por toda parte e foi amado por muitos. Desde então os corações se abrasaram nas chamas do divino amor, o Deus foi mais amado em poucos anos do que nos quatro mil anos que decorreram depois da criação”.
Muitos cristãos costumam preparar em suas casas um presépio para representar o Natal de Jesus Cristo. Mas hoje são poucos os que pensam em preparar seus corações, a fim de que o Menino Jesus possa nascer neles e ali repousar. Sejamos nós desse pequeno número e procuremos nos dispor dignamente para arder nesse fogo divino que torna as almas contentes neste mundo e felizes no Céu.
Com a queda do homem depois do pecado, trincou-se o relacionamento habitual entre Adão e Deus. No imponderável das tardes, Deus caminhava no Paraíso com os nossos primeiros pais, num convívio de pai com filhos. Aquele que era as suas delícias, que os visitava com todo desvelo paterno, deixou de fazê-lo. Com efeito, não foi Deus quem rompeu com Adão, mas foi este que, ao comer o fruto proibido, rompeu com Deus, afastando os seus descendentes do Criador.
Deus puniu os homens impondo-lhes a pena de trabalhar a terra para comer mediante o suor de seu rosto. As intempéries, a morte, as doenças, a natureza agreste investiam contra ele, mas uma esperança pairava de que um dia Deus voltaria para resgatar as primícias de sua criação. E de fato aconteceu, quatro mil anos depois.
Na noite do Natal a Misericórdia divina vence a justiça punitiva e resgata o homem contaminado pelo pecado. Volta a conviver com ele e fazer as suas delícias estar com os filhos dos homens. Deus se faz homem, e passa a pertencer à raça humana, nascendo na noite de Natal: "O Verbo se fez carne e habitou entre nós e vimos a Sua glória, glória própria do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade".
Na terra todos eram nocentes e nessa condição não havia quem pudesse reabilitar a amizade entre Deus e os homens. O Filho de Deus se serviu da Imaculada Virgem Maria para nos trazer o Inocente por excelência. Ele veio pagar pelos pecadores.
Daí a importância do Natal, que é a festa de Luz, porque Jesus Cristo é a Luz verdadeira que ilumina todo homem que vem a este mundo. São João Evangelista diz “que estava no mundo, e o mundo foi feito por Ele, e o mundo não O conheceu. Veio para o que era seu, e os seus não O receberam".
Esse ensinamento não nos faz pensar em Deus em nossos dias tão tenebrosos para a fé e para as almas? Não nos faz lembrar as promessas de Nossa Senhora de Fátima e o triunfo do seu Imaculado Coração?

Que esses pensamentos ocupem nossas cogitações e nossas vias ao longo de 2017. São os meus votos neste Santo Natal a todos os leitores. 

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Pensa nos novíssimos e não pecarás

Pe. David Francisquini

Em artigo anterior escrevemos sobre a corte celeste, morada das almas santas que fazem parte da Igreja triunfante.  Hoje nos ocuparemos de outro novíssimo do homem, o purgatório, local onde se encontram as almas dos fiéis defuntos que sofrem temporariamente as penas de um fogo purificador e, por isso mesmo, abrasador.
Ali as almas não contemplam a glória de Deus e padecem dores semelhantes às provocadas pelo fogo terreno. Sofrimentos indizíveis – afirmam os tratadistas – que imaginação alguma seria capaz de avaliar. Trata-se de penas dos sentidos, que as almas devem padecer pelos pecados cometidos contra o Criador.
Elas sofrem por não terem feito bom uso dos tesouros inesgotáveis da Igreja em seu favor, como são as indulgências plenárias e parciais. Sabemos da existência do purgatório pelas Sagradas Escrituras, quando exortam o pensamento santo e salutar de orar pelos mortos para que sejam livres dos seus pecados. Nosso Senhor fala de um cárcere de onde não se sai antes de pagar o último centavo.
A tradição católica encarregou-se de criar o costume de repicar os sinos para manifestar o luto pela morte de alguém; de estabelecer, no dia de finados, as Missas dos defuntos; de fazer as orações e as solenidades fúnebres que acompanham o sepultamento; de torná-lo digno e sacral pelas cerimônias das exéquias.
A mesma tradição adverte para a importância e o significado de se socorrer as almas do purgatório com Missas e boas obras. Com efeito, elas são atendidas através de orações, jejuns, esmolas, recepção digna dos santos sacramentos e das indulgências. E quem contribuir para remir uma alma do purgatório pode confiar que terá nele redenção breve, pois Deus é probo e equitativo, rico em misericórdia e perdão.
É certo e até de fé que nós, com os nossos sufrágios, especialmente com as orações recomendadas pela Igreja, bem podemos auxiliar aquelas santas almas. Não sei como se poderá isentar de culpa quem deixa de lhes oferecer qualquer auxílio, ao menos algumas orações", afirma Santo Afonso Maria de Ligório.
Se quisermos o socorro de suas orações, é justo que cuidemos de socorrê-las com as nossas e com as boas obras, exalta o santo. E argumenta que a caridade nos manda socorrer o nosso próximo em suas necessidades, mormente quando podemos fazê-lo sem incômodo. Ora, cai debaixo da palavra ‘próximo’ essas almas que estão no purgatório, porque pertencem à Igreja e à comunhão dos Santos.
Na verdade, trata-se de um dever cristão socorrê-las em suas necessidades, por serem verdadeiras prisioneiras de um fogo mais rigoroso que qualquer outro sofrimento deste mundo. E embora já tenham se salvado, não podem fazer nada por si mesmas, mas nós da Igreja militante podemos fazer por elas. Eis um dever cristão. Em contrapartida, elas são gratas e rezam pelos seus benfeitores que se encontram exilados aqui na terra e necessitando de ajuda sobrenatural.
O envolvimento com as coisas terrenas pode acabar levando à negligência no cumprimento das obrigações dos católicos e a uma perigosa consequência: o apego às criaturas em detrimento do amor de Deus, nosso fim último, verdadeiro e sumo bem, segundo o que determina o primeiro Mandamento da Sua Lei.
Ainda que observantes dos preceitos do Decálogo e dos Mandamentos da Igreja, que determinam, por exemplo, a frequência à Santa Missa aos domingos e dias santos de guarda, à busca regular e sempre que necessário do sagrado tribunal da Confissão – condição sine qua non para a obtenção do perdão dos nossos pecados – é indispensável termos em mente que as faltas cometidas contra os Mandamentos causam graves prejuízos à saúde da alma.
Tais faltas são como nódoas nas almas, com graves danos à integridade da vida sobrenatural traduzidos em diferentes graus, seja pelo afastamento de Deus, seja pelas reincidências nas faltas, seja ainda na proporção das deliberações e das culpabilidades. Disso depende o tempo maior ou menor em que a alma do fiel defunto fica no purgatório.
Importa refletir sobre a situação do indivíduo colhido pela morte para entendermos o real significado do purgatório e o seu sentido no contexto da misericórdia divina. Lembremo-nos de que somos instados por Nosso Senhor a ser perfeitos como o Pai celeste é perfeito. O Seu divino Filho nos conclama a aprender d’Ele que é manso e humilde de coração. Isto requer de todo o verdadeiro católico uma vida pura, desapegada das coisas deste mundo, modesta em todas as suas condutas. 
No entanto, os atrativos da vida não raro nos atrai de modo compulsivo para vias faltosas, na contramão dos propósitos e contrários aos deveres de fiéis seguidores de Cristo. Temos, por conseguinte, como resultado das transgressões o quadro acima descrito, em que o fiel sente a sua alma acabrunhada pelos pecados.
Embora tenham sido eles removidos pela absolvição sacramental da Confissão, ainda resta um débito enorme para com a Justiça divina, ou seja, as penas temporais resultantes das recaídas em faltas leves e graves praticadas ao longo da vida. De acordo com os Doutores da Igreja, o Senhor, Justo Juiz, pune com severidade as menores faltas, pois mesmo estas O desagradam infinitamente e requerem igual reparação.
Como o ouro passa pelo fogo para ser purificado de suas impurezas, assim deverão passar as almas contaminadas pelos traços deixados pelo pecado. Todos os sofrimentos da terra nada são se comparados ao menor sofrimento do purgatório, como afirmam os santos. Dir-se-ia que nesta infeliz hipótese as vestes do pecador exigem reparos, pois não estão à altura do grande banquete nupcial que o Senhor preparou para os convidados.
Como se sentiria uma pessoa em vias de comparecer diante de um grande personagem, sabendo tratar-se de alguém da mais elevada honorabilidade e integridade moral? É de bom tom que, em momentos como este, todos se apresentem da melhor forma possível, trajando-se com o maior rigor e decência. Por que seria diferente ao comparecermos diante de nosso Deus?
Se tivermos consciência de não nos encontrarmos vestidos de maneira conveniente, torna-se imperativo prepararmo-nos por meio de orações, atos reparatórios e penitenciais, que têm o poder de minorar, e, em alguns casos, até de remover as nossas dívidas temporais. Disto nos dão exemplo as biografias de inúmeros santos, heróis e modelos irretocáveis da nossa fé.
Caso contrário, essas penas serão debitadas no fogo purificador do purgatório. Como diz o próprio nome, esse é um “lugar” de purificação onde as almas passam um tempo maior ou menor, em todos os casos com uma duração que não tem proporção com os critérios terrenos, mas sim com os da eternidade.
Esse fogo purificador restitui às almas a vestimenta do amor de Deus, a santidade e o vigor que lhe são afins, cuja realidade só as almas bem-aventuradas vislumbram e almejam com perfeito ardor. Somente depois de refeitos e purificados poderemos contemplar Deus face a face.  
Se refletirmos sobre as fraquezas humanas, entenderemos por que tantas almas, mesmo as mais santas, levam o seu quinhão de padecimentos para o post mortem. Exceção feita da Imaculada Mãe de Deus, Maria Santíssima, e de alguns poucos santos que aprouve à Misericórdia de Deus, em Seus altíssimos desígnios preservar.  

Entretanto, o hábito salutar de confessar-se tão logo se tenha a infelicidade de cair em pecado mortal mantém o fiel em estado de graça, na amizade de Deus, condição indispensável para, além de sufragar as almas dos que já se encontram no purgatório, conquistar para si méritos que aumentam a sua glória no Céu.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Remédio para lutar e vencer

                                                          Pe. David Francisquini
A liturgia tradicional celebra no mais alto grau as duas festas que a Santa Igreja comemora nos dias 1° e 2 de novembro. A primeira nos recorda as almas santas que gozam da visão beatífica na corte celeste; e a segunda, as almas que ainda padecem por suas faltas. A Igreja Militante nos convida assim, aqui na Terra, à união com a Igreja Triunfante e a Igreja Padecente, ou seja, com as almas do Céu e do Purgatório.
Convido o leitor a percorrer um pouco essas magníficas paragens dos justos – dos santos, de todos os santos. Quanto ao Purgatório, ficará para outra ocasião. Enquanto na Terra vivemos em meio à miséria e à desolação, sobretudo nos dias de hoje, na corte celeste poderemos nos deslumbrar diante das maravilhas calmas e alegres, próprias a um lugar onde impera a ordem decorrente do bom, do verdadeiro e do belo.


Santo Tomás indaga se Deus, com o seu infinito poder, poderia criar outros seres mais perfeitos que os já criados. Ele afirma que sim, mas faz uma distinção ao apresentar as três exceções: Jesus Cristo, a Virgem Maria e a bem-aventurança eterna, isto é, o gozo do próprio Deus.


Essa bem-aventurança é um bem que absorve o ser humano na contemplação beatífica. Sob tal aspecto, não pode haver algo maior nem melhor que Deus pudesse fazer. Santo Agostinho afirma que nessas três coisas Deus esgota sua ciência, seu poder, sua riqueza e sua bondade. Para que se possa ter uma ideia da felicidade que os bem-aventurados gozam no Céu, basta considerar diferença quase infinita deste com a Terra.

Por maior que seja a felicidade neste mundo, ela não passa de uma morte que vai se aproximando aos poucos. Se quiser, uma vida que vai se extinguindo, ou uma morte que vive por um espaço de tempo, segundo o conceito do Bispo de Hipona. Somos como estrangeiros, peregrinos, transeuntes que fazem uma grande caminhada para um destino infinito, para usar pensamento da Escritura Sagrada.

Ao olhar o que nos cerca, tudo é vil e repugnante, como um cisco comparado à grandeza infinita de Deus, que nos absorve e nos cumula de eterna felicidade, pois Ele é o fundamento e a razão suprema do ser inteligente e volitivo que somos.  Peregrinos nesta terra de exílio rumo à eternidade, uma alternativa nos resta: amar o mundo visível, as coisas perecíveis, desprezíveis, fugazes, que não passam de nuvens que esvoaçam e desaparecem no firmamento, ou amar e viver eternamente para o fim último que é Deus, sentido de nossa existência, porque é eterno, infinito, sólido, incorruptível, verdadeiro e seguro.


No mundo há somente suor, trabalho, tristeza, dor, temor e ilusão – “vaidade das vaidades tudo é vaidade”, advertem-nos as Escrituras Sagradas. O Céu é uma cidade sem sofrimento, onde não há pressa ou sofrimento algum. Nele há paz, descanso, alegria sem par, segurança ilimitada, bem-estar, pois na Corte celeste reina a ordem. É a Casa do Pai. Dentro dela, riquezas indescritíveis, harmonias encantadoras, bens imperecíveis, união estreita e íntima entre os seus cortesões.


Ao observar este vale de lágrimas, o mundo que nos cerca, o que vemos? Pessoas envoltas em amarguras e pecados, traições e desgostos, numa corrida desenfreada atrás de bens materiais, de um gozo fugaz que traz, à maneira de efeito rebote, tristezas e remorsos, de um mundo em que só há confusão e atribulação do espírito.


Como num espelho em que se podem contemplar ligeiramente um rosto ou as figuras nele refletidas, assim passam as comodidades, a segurança, o bem-estar da sociedade hodierna, que se debate para manter-se numa aparente estabilidade, que se contorce enquanto avança rumo às profundezas do caos.
Por outro lado, podemos contemplar o mundo de felicidades e esperanças, que nos conduz a desapegar – isso mesmo – de aborrecimentos, tribulações, prantos, tentações, perigos e mil outras provações do gênero. A consideração desse mundo nos dá um lenitivo espiritual que serve de remédio retemperante de nossas forças, a caminho da cidade dos eleitos, lugar que não conhecerá fim.
Não se trata de uma prisão como tantas existentes neste vale de lágrimas, onde os malfeitores e criminosos são punidos, mas da verdadeira pátria dos homens virtuosos, da Jerusalém celeste, que a nossa inteligência é incapaz de compreender, da cidade que nenhuma riqueza da terra pode edificar e em que todos encontram felicidade de conviver; cidade perfeita onde o nosso espírito encontrará a verdadeira felicidade. Pensar na Corte celeste é remédio para lutar e vencer.